Abolição da escravidão em Cuba

Assim como o Brasil, Cuba foi um dos últimos países da América a abolir a escravidão

Por
Alice Elias
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Abolição da escravidão em Cuba
"Os estudos - e dados trazidos por eles - sobre racismo no Brasil mostram que a escravidão, a abolição e a substituição da mão de obra impactaram e impactam nossa sociedade", afirma Caroline Passarini Sousa. (Arte: Alice Elias)

 

A abolição da escravatura em Cuba se concretizou em 7 de outubro de 1886, décadas depois da primeira onda abolicionista no mundo. O processo de abolição ocorreu através da gradual transição do sistema escravista: Cuba, assim como o Brasil, foi um dos últimos países da América a abolir a escravidão.

Cuba era uma colônia do Império Espanhol de grande importância estratégica nas rotas marítimas que conectavam a Espanha às demais colônias americanas. Ao longo do século 19, Havana foi uma das maiores cidades escravistas do Novo Mundo, juntamente com o Rio de Janeiro. “Cuba passou de um sistema escravista marginal a um dos maiores destinos de pessoas escravizadas no século 19”, afirma Caroline Passarini Sousa, doutoranda e mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Caroline Passarini explica que as abolições pela América foram consequência de uma série de fatores, como a crescente circulação do ideário iluminista, o surgimento do igualitarismo radical e, especialmente, a resistência escrava presente em todo o período de escravidão. Confira abaixo a entrevista sobre os paralelos entre a escravidão em Cuba e no Brasil, o contexto do movimento abolicionista, e as formas de reparar os danos da escravidão que impactam a sociedade até hoje.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos marcaram a colonização de Cuba? Que semelhanças e diferenças podemos observar entre a escravidão em Cuba e no Brasil?

Caroline Passarini Sousa: Cuba era uma colônia pertencente à Espanha e, apesar de ser a maior ilha do Caribe, até o fim do século 18 foi uma colônia periférica dentro do Império Espanhol. Cuba produzia café, fumo, gado, mantimentos e açúcar, mas em comparação às colônias Inglesas e Francesas do Caribe, grandes exportadoras de açúcar, a produção cubana era insignificante. No entanto, a ilha tinha uma posição estratégica de intermediária nas rotas marítimas que conectavam a metrópole (Espanha) às demais colônias americanas. Então, podemos dizer que Cuba era economicamente marginal, mas de grande importância estratégica até meados do século 18 e, nesse período, sua economia girava em torno da administração dos seus principais portos, a criação de gado e produção de tabaco.

Esse panorama começa a mudar a partir da década de 1770, com um ciclo de crescimento da economia cubana envolvendo a produção de tabaco e café, mas principalmente a de açúcar, que logo passou a ser dominante. A partir de Havana, cresceu o número de engenhos e sua capacidade de produção: entre 1777 e 1817 a população da região se quadruplicou. Quando, em 1791, eclode em Saint Domingue a  Revolução Haitiana (até então maior produtor mundial de açúcar), Cuba se constituía a região mais bem posicionada para assumir o seu lugar. É neste momento que a ilha vai, paulatinamente, se tornando um dos principais destinos do tráfico atlântico de escravos, que chegam para trabalhar no setor açucareiro. Para termos uma ideia, entre 1817 e 1846 a população escrava em Cuba  teve um crescimento de 160%.

Enquanto Cuba passou de um sistema escravista marginal a um dos maiores destinos de pessoas escravizadas no século 19, no Brasil o sistema escravista nunca foi secundário, e a escravidão penetrou o tecido social brasileiro. A propriedade escrava era disseminada pelos mais diversos setores da sociedade, incluindo os mais pobres. O século 19 aproximou Brasil e Cuba em termos de semelhanças relacionadas ao sistema escravista atlântico. Apesar de operar em grande escala há mais tempo no Brasil, o tráfico de escravos aqui também se intensifica no século 19, principalmente na primeira metade, mesmo estando legalmente proibido desde 1831. Para entendermos a dimensão, estima-se que entre 1831 e 1850 (ano do fim definitivo do tráfico), entraram mais de 700 mil africanos e africanas escravizados ilegalmente no país. Havana e Rio de Janeiro dividiram ao longo do século 19 o posto de maiores cidades escravistas do Novo Mundo. Além disso, Brasil e Cuba possuíam uma grande população livre de cor com altos índices de alforria (liberdade mediante carta de alforria fornecida pelo proprietário).

O processo de abolição do tráfico e da própria escravidão também aproximam as histórias brasileira e cubana. No último quartel do século 19, ambos se apresentavam como os últimos bastiões da escravidão nas Américas, indo na contramão do que se observava no restante do mundo. E embora tivessem aprovado leis ou assinado tratados se comprometendo a acabar com o tráfico negreiro (Cuba em 1820, o Brasil em 1831), os países não cumpriram seus compromissos, e o tráfico operou na ilegalidade e em grande escala até 1850 no Brasil, e 1860 em Cuba. Apenas na década de 1870 foram aprovadas as primeiras leis emancipacionistas, Brasil e Cuba iniciaram o processo de abolição gradual da escravidão por meio das as chamadas Leis de Ventre Livre (Lei Rio Branco no Brasil e Lei Moret em Cuba). Estas leis libertavam o ventre de mulheres escravizadas (a condição do ventre materno determinava se uma pessoa era livre ou escrava), que a partir daquele momento teriam filhos “livres”. Os senhores deveriam criar essas crianças até os oito anos de idade, quando então decidiam se continuariam com eles ou os entregariam ao Estado mediante pagamento de indenização. As crianças então deveriam prestar serviços aos senhores de suas mães até completarem 21 anos. Cuba e Brasil devotaram considerável esforço para preservar a viabilidade e defender a legitimidade do tráfico e da escravidão diante da pressão britânica, sendo assim, os dois ultimos lugares a abolirem a escravidão nas Américas; os conflitos contra a escravidão no fim do século 19 acabaram provocando crises de legitimação as quais nenhum dos governos (a metrópole Espanhola e o Império Brasileiro) conseguiu resolver ou sobreviver.    

Por muito tempo, os estudos de história insistiram em comparar a história da escravidão brasileira à norte-americana, talvez seja a hora de estabelecer um diálogo maior e mais aprofundado com entre a história da escravidão brasileira e cubana, um campo que tem se mostrado profícuo e extremamente complexo para os historiadores e historiadoras da escravidão.

Serviço de Comunicação Social: Qual o contexto que impulsionou o movimento abolicionista internacional?

Caroline Passarini Sousa: Sem dúvida o primeiro fator que impulsiona o abolicionismo a crescer como um movimento internacional é a própria resistência de homens e mulheres escravizadas. Os diferentes percursos que desembocaram nas diversas abolições por toda América nascem da resistência escrava que acompanha todo o período de vigência da escravidão. A ideia de que a escravidão era algo errado e desumano foi sendo formada aos poucos e se expandiu rapidamente no fim do século 18 e início do 19. Para isso também contribuíram a crescente circulação do ideário iluminista, que questionava a instituição escravista, e o surgimento do igualitarismo radical em alguns movimentos religiosos evangélicos, como os quakers, que questionavam diversas hierarquias, dentre elas a escravidão - a qual seria contra a vontade divina.

A partir de então, conseguimos observar o surgimento de grupos e sociedades antiescravistas, principalmente na Inglaterra, França e em algumas regiões da América do Norte, às quais promoviam palestras públicas, publicavam panfletos e procuravam publicizar os horrores da escravidão. Em meio a este contexto de organização da população branca e livre, os escravizados seguiram tensionando o sistema escravista, como sempre o fizeram, e as tentativas de fuga e resistência passaram a ser divulgadas e auxiliadas por estes grupos, que as utilizavam também como propaganda contrária à escravidão.

É importante lembrar que, de maneira geral, na Europa a população não convivia diariamente e de maneira intensa com a escravidão da mesma forma como isso acontecia nas Américas, e por isso, as pessoas reagiam a comportamentos violentos dos senhores de escravos, que eram normalizados e considerados comuns nas sociedades escravistas atlânticas. Na Europa, as pessoas passaram então a defender que seus territórios fossem locais livres da escravidão e que, ao pisar neste ‘solo livre’, as pessoas não deveriam mais ser consideradas escravas. Em meio ao crescimento do abolicionismo como um movimento abrangente, sobretudo na Inglaterra, a Revolução de São Domingos, atual Haiti, – uma revolução feita com a participação massiva de escravizados – foi crucial para cristalizar a necessidade da abolição permanete da escravidão. Ela acabou reforçando o medo da população branca diante de uma insurreição escrava. A partir de então, a necessidade de evitar o surgimento de um novo Haiti, acabar com a escravidão e conduzir este processo (que deveria ser lento, gradual e pacífico) se torna imprescindível aos olhos das autoridades metropolitanas/senhoriais. Este foi o projeto vitorioso por todas as Américas onde, com exceção do Haiti e da Guerra Civil dos Estados Unidos, todos os processos de abolição foram conduzidos de maneira gradual.

Serviço de Comunicação Social: Cuba foi um dos últimos países da América a abolir a escravidão, anos depois da primeira onda abolicionista. Quais os principais interesses dos países escravistas em aderir ou rejeitar o movimento?

Caroline Passarini Sousa: É difícil pontuar as motivações dos países escravistas em relação ao movimento abolicionista. Pode se dizer que Cuba tinha uma classe senhorial solidamente enraizada e com amplos poderes econômicos e políticos, os quais estavam intimamente atrelados à manutenção da escravidão. Cuba, ao lado do Brasil, só encaminhou o fim da escravidão na segunda metade da década de 1880. No momento em que as primeiras experiências de abolição da escravidão estavam acontecendo no mundo atlântico (no norte dos Estados Unidos e na América hispânica continental ao longo da primeira metade do século 19), a classe proprietária cubana experimentava a expansão da produção do açúcar, liderando o mercado mundial de exportação do gênero (em 1868, Cuba era responsável por 40% da produção mundial). A açucarocracia cubana, que assim como os cafeicultores brasileiros, assistia a uma expansão da economia e da escravidão ao longo do século 19, certamente não aceitaria se desfazer facilmente deste sistema.

Só para termos uma ideia de como é difícil explicar o porquê de um país aderir ou rejeitar o movimento abolicionista, existe um grande debate historiográfico a respeito da posição inglesa contrária à escravidão em fins do século 18. Isso porque a Inglaterra era a maior potência comercial escravista do mundo, e a instituição era fonte importante e crescente de riqueza para o país, ainda assim liderou o processo de abolição do tráfico negreiro e da popularização do movimento abolicionista ao final do século 18. Em linhas muito gerais, para Eric Williams, importante historiador caribenho, após a independência dos Estados Unidos, a escravidão teria diminuído sua lucratividade, enfraquecendo gradativamente o compromisso da Inglaterra com a instituição. Já para o historiador Seymour Drescher, a economia escravista estava na verdade em ascensão, com aumento do comércio britânico no Caribe. Nesse sentido, diversos estudos mais recentes vêm argumentando que as razões econômicas não são suficientes para explicar a questão, por isso, os contextos específicos de cada país, bem como diferentes e complexos fatores (social, cultural, econômico) precisam ser analisados com cuidado para entendermos as motivações por trás da adesão ou recusa ao movimento abolicionista ao longo do século 19.

Serviço de Comunicação Social: Em sua análise, de quais formas o período escravocrata continua a impactar a sociedade atual? Quais medidas devem ser adotadas para reparar tais consequências?

Caroline Passarini Sousa: Os estudos - e dados trazidos por eles - sobre racismo no Brasil mostram que sim, a escravidão, a abolição e a substituição da mão de obra, impactaram e impactam nossa sociedade. Falando um pouco mais especificamente sobre a escravidão, existiu um discurso produzido na academia que penetrou e ressoa na sociedade brasileira sobre a brandura da escravidão no país. Quando comparada à escravidão norte-americana e ao período pós-abolição de segregação nos Estados Unidos, criou-se a ideia de que no Brasil as relações escravistas não foram violentas, e que não existiu ou existe discriminação racial aqui, uma vez que isso nunca foi regulamentado por lei, como em outros lugares. Os índices de alforria e a miscigenação foram aspectos utilizados como prova do abrandamento da escravidão, tanto no Brasil quanto em Cuba. Afinal, se os escravizados se libertavam mais, era porque os senhores eram benevolentes e concediam a liberdade; e se há miscigenação não há discriminação. Esses discursos têm voltado à tona e servem para escamotear a realidade de discriminação e violência racial do período escravista e como ela, de maneiras diferentes, segue presente em nossa sociedade.

Acredito que para reparar as consequências da escravidão na sociedade atual é preciso olhar para primordialmente para a educação. Desde a educação básica até a universitária, é necessário que tenhamos uma educação antirracista nas escolas, e que este trabalho não se restrinja às comemorações em novembro (quando geralmente as escolas abordam a temática). A questão também não é trabalhar apenas com o racismo enquanto um termo genérico, é preciso que as crianças conheçam a história e que a aprendam de maneira crítica. Nesse sentido, tivemos a Lei 10.639/03, que versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, e ressalta a importância da cultura negra na formação da sociedade brasileira. Mas, é preciso também que a educação antirracista não fique a cargo apenas dos que ensinam história, ela precisa estar em todos os âmbitos e disciplinas da educação básica. Além disso, políticas públicas de cotas raciais precisam ser mantidas e ampliadas. Neste ano completamos 10 anos da Lei de cotas (Lei nº 12.711/2012), que entra em revisão. É preciso cuidar também para que ela não seja destruída/revogada em meio ao caos e desmonte que este governo tem promovido na educação brasileira (e não só para ela). É necessário que lutemos para que estes programas se ampliem, pois apenas quando a população jovem negra e periférica realmente tiver acesso ao ensino superior gratuito e de qualidade é que poderemos de fato avançar numa agenda e implementação de uma educação verdadeiramente antirracista no Brasil.

Caroline Passarini Sousa é mestre e doutoranda em História Social pela FFLCH. Estuda gênero, escravidão e emancipação nas Américas com enfoque nos discursos e representações feitas sobre mulheres negras escravizadas, construção do feminino, corpo, maternidade e sexualidade no século 18 e 19. Sua pesquisa de doutorado, financiada pela Fapesp, tem como objetivo acompanhar todas as formulações e opiniões colocadas em torno das Leis de Ventre Livre, brasileira e cubana, em relação às mulheres escravizadas, buscando analisar como a figura desta mulher está sendo avaliada no tocante à sua atuação, seu corpo, sexualidade, capacidade reprodutiva, e qual o papel histórico atribuído a essas mulheres no exercício da maternidade.