Nascimento de Adam Smith

Além de ter importância fundamental no campo econômico, Smith foi um filósofo da natureza humana

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
Data de Publicação

“Era um filósofo da natureza humana, particularmente voltado para os princípios e consequências do convívio humano, tanto individualmente quanto no conjunto da sociedade civil”, explica Alexandre Amaral Rodrigues. [arte: Gabriela Ferrari Toquetti]

Há 300 anos, em 1723, nascia Adam Smith, filósofo e economista escocês. Mesmo aqueles que não o conhecem certamente interagem no dia a dia com conceitos observados há muito tempo por ele, dada sua importância no campo da Economia. Foi Smith que introduziu, por exemplo, o conceito de “mão invisível”, além de ter sido o fundador do liberalismo econômico. Esse modelo defende o livre mercado com pouca interferência do governo, mas vale destacar que Smith acreditava na existência de leis regulatórias para impedir abusos.

Suas contribuições, no entanto, não se limitam à Economia: na Filosofia, realizou estudos acerca da condição humana, dos sentimentos e das paixões. Em sua primeira obra, Teoria dos Sentimentos Morais, apresenta quatro conceitos fundamentais ao seu pensamento filosófico e à própria natureza humana: os sentimentos morais, a simpatia - hoje entendida como empatia -, a proteção da própria vida e o autointeresse. Já assuntos relacionados ao trabalho e ao comércio foram trabalhados com maior profundidade em Riqueza das Nações, publicado em 1776.

Em entrevista ao Serviço de Comunicação Social, Alexandre Amaral Rodrigues, doutor em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, expôs detalhadamente o pensamento de Adam Smith e seus estudos na Filosofia e na Economia. “A Riqueza das Nações é uma obra conforme à Teoria dos Sentimentos Morais nos pontos mais relevantes de seus sistemas teóricos. Nesta, a propriedade e a vida são leis sagradas para a sociedade, o que torna o comércio uma concorrência aprovada em tudo que seja honesto. Naquela, é necessária a justiça e o autointeresse para que haja o próspero suprimento da nação, com uma liberdade de comércio que lhe é própria em concepção teórica, e deve ser na prática a maior possível. No conjunto, instituem-se, no âmbito teórico, e de fato instituíram-se no âmbito prático (embora em menor grau) as maiores segurança, liberdade e prosperidade que o ser humano pode ter”. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre quem foi Adam Smith, para os leitores que ainda não o conhecem?

Alexandre Amaral Rodrigues: Adam Smith faz 300 anos em 2023. Ele é vastamente conhecido por sua obra A Riqueza das Nações, publicada em 1776. Costuma-se pensar que ele fundou a economia política e formulou e divulgou a ideia do pleno liberalismo econômico, em que o melhor para a sociedade e para o seu progresso material seria que todos buscassem ganhar cada vez mais no livre comércio, sem que o governo interferisse em nada, sem que houvesse sequer direitos trabalhistas.
Pode-se de fato afirmar que ele fundou a economia política para os que vieram depois, mas ele próprio não sustentou isso em parte alguma. Era um filósofo da natureza humana, particularmente voltado para os princípios e consequências do convívio humano, tanto individualmente quanto no conjunto da sociedade civil.
Sua primeira obra é a Teoria dos Sentimentos Morais, de 1759, que trata do modo como os sentimentos e paixões individuais convergem, por meio do que hoje chamamos de empatia, para a formação de princípios morais, que regulam os convívios particulares e, a partir destes, os grandes agrupamentos humanos e, em seguida, a sociedade civil. Em certa medida, já trata da instituição do Estado como uma necessidade humana e algo natural, não planejado. Seu fundamento está nos sentimentos originais que, por empatia, constituem o direito à vida, ao corpo e às posses individuais, o que constitui a justiça.
O tema do trabalho e do comércio foi aprofundado na Riqueza das Nações, de 1776. Smith de fato sustenta a liberdade comercial, inclusive a do trabalho, o que não incluiria o que hoje chamamos de leis trabalhistas, exceto o direito ao salário, tampouco um extenso provimento de necessidades sociais por parte do governo – Smith não usa a palavra Estado.
Mas é digno de destaque que ele notou problemas como a necessidade de educação fortemente subsidiada pelo governo para os filhos dos pobres, porque a divisão do trabalho, com sua modernização, faz com que ele consista em movimentos repetitivos, o que torna os rapazes e adultos trabalhadores incapazes de uma vida social e mesmo familiarmente boa. A educação visa a capacitá-los para trocar ideias e refletir, de modo a melhorar essa condição, mas jamais resolvê-la, o que seria impossível. Smith também apontou que a solidão ou o individualismo urbano excessivo levava os pobres a uma religiosidade fanática, motivo pelo qual defendeu o fim da censura cultural para eles, que era geralmente circense. Essa cultura é o que frearia o fanatismo, ridicularizando-o, o que era muito justo. Posta essa restrição, a religiosidade é boa para unir as pessoas pobres.
O autor de fato respalda o livre mercado, mas isso não quer dizer completamente isento de leis regulatórias. O mercado financeiro, por exemplo, deve ser regulado por leis que impeçam o abuso, o que arrisca os investidores a perdas enormes, principalmente para os que não são ricos. Seria o que hoje chamamos de “bolha financeira”. Também defende que o que é vicioso, o que se aplicava principalmente às bebidas alcoólicas consumidas pelos pobres, não deve ser proibido, mas sim pagar um imposto enorme, de modo que se torne caro demais e, por outro lado, proporcione recursos ao governo.
Mais do que isso, contudo, é preciso compreender que Adam Smith é um filósofo que trata da condição humana, por isso escreveu pequenos, porém excelentes ensaios sobre a origem das ciências, tomando como exemplo a astronomia, e sobre as artes. Suas “considerações sobre a música” são muito mais modernas do que a de seus contemporâneos, pois afirma que a música, na verdade, é uma “forma” que nos causa sentimentos, sem que se associe a qualquer imagem.
Enfim, há muitos temas em Smith, e para compreendê-lo em profundidade é necessário conhecer suas outras obras. Ele se considerava um filósofo, e de fato sua filosofia forma um todo.
Agora, com as comemorações de seus 300 anos, haverá diversos eventos de palestras, colóquios e debates em todo o mundo, principalmente de 5 a 10 de junho, com Glasgow como seu centro. Muitos novos estudos virão, o que, com o tempo, provavelmente mudará a perspectiva geral que se tem de Adam Smith, e talvez forme a base de sua consideração no século XXI.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam o pensamento de Smith?

Alexandre Amaral Rodrigues: Temos quatro elementos importantes. Primeiramente, os sentimentos morais, que podem ser benévolos ou malévolos para os indivíduos e/ou para a sociedade. Em segundo lugar, a simpatia, que é um mecanismo que permite que estes sentimentos se divulguem, se aprovem ou se reprovem, o que vem a estabelecer os princípios morais, as regras de recompensa pelo que é benévolo, censura ou punição pelo que é malévolo, e moderação do que pode ser um ou outro. Em terceiro lugar temos o que nos é natural, anterior à simpatia, que é o de manter a própria vida pela proteção do corpo e obtenção dos suprimentos para manter-se, o que se modifica e regula pela simpatia. Daí que a punição aos atos ou ameaças malévolos, que atacam, neste caso, a própria manutenção da vida, estabeleçam o direito à vida e à propriedade. Como consequência, em quarto lugar, temos o interesse privado (ou autointeresse), o de obter e aumentar o quanto possível os bens pessoais. Os três primeiros são tratados na Teoria dos Sentimentos Morais, e o último é tratado em parte nesta e aprofundado na Riqueza das Nações.
A simpatia é o que hoje denominamos empatia, mas sob uma concepção especial. Ao vermos o outro em algum contexto, tendemos naturalmente a buscar mergulhar em sua condição. Se, diante disso, sentimos ou faríamos o mesmo que aquele indivíduo a quem observamos, naturalmente aprovamos seus sentimentos ou ações. Do contrário, reprovamo-los. Por outro lado, desejamos a aprovação alheia, e nos sentimos humilhados se isso não ocorrer. Mas quando assistimos a dois indivíduos em situação de ofensa e agressividade, colocamo-nos primeiramente no lugar do agredido e reprovamos o agressor. Se, porém, o agredido cometeu antes algum ataque ao agressor, desprezamos o agredido e não só aprovamos o agressor, como também podemos nos juntar a ele.
É precisamente disso que provém o direito natural à vida e ao corpo, assim como às posses. É o princípio absolutamente fundamental para o convívio humano. Cada um de nós quer preservar a si e às posses. Por isso, se vemos um indivíduo matar, ferir ou roubar, ou ameaçar fazê-lo, imediatamente, por empatia, aprovamos que a vítima se proteja ou reaja e, se formos sensatos, unimo-nos a ela. Caso tenha sido morta a vítima, queremos vingá-la e punir o indivíduo criminoso. A partir disso deriva-se, naturalmente, o direito à vida e à propriedade, assim como ao que alguém ou alguma instituição deve à pessoa por compromisso firmado. Tais são os pilares não belos, mas necessários para que haja qualquer república ou sociedade política, que constituem a justiça.
A benevolência nos causa admiração por quem a praticou e aprovação ao beneficiado que mostra gratidão. A afetividade une a família e grupos por amor ou amizade, aí incluso o gosto pela firme honestidade e pelas habilidades. Isso, diz Smith, é o que torna a sociedade bela. Mas o direito à vida e à propriedade é o que a preserva.
É assim que o autointeresse encontra sua importância. A Riqueza das Nações destaca que, garantida a propriedade, pode-se fazer a troca. Com o avanço da sociedade, desejamos, além de nos sustentarmos, obter e aumentar nossa riqueza. Isso já aparecia na Teoria dos Sentimentos Morais como algo que leva à competição por riquezas, mas o que se salientava é que a observação dos espectadores aprova tal luta ou corrida, contanto que não haja qualquer jogo sujo ou trapaça. No último caso, há a reprovação, cabível de punição. Ocorre que a busca por riquezas e seu aumento deve-se ao desejo de ser admirado, e o competidor não quer a reprovação dos espectadores. Daí ela tende, desde o início, a manter-se dentro dos limites morais. Já na Riqueza das Nações, destaca-se que a competição, com a obediência àqueles princípios já pressupostos, leva ao progresso social.
É precisamente na Riqueza das Nações que o autor aponta que, numa grande sociedade, não podemos obter tudo de que precisamos por meio da benevolência ou do afeto. O comércio é o único modo de nos provermos do que necessitamos. Nada se associa, aqui, a valores afetivos. A troca é um movimento de frieza, que se dá pelo exercício do autointeresse, e o que a regula é o equilíbrio entre oferta e demanda. Para vender algo, quero que me paguem o máximo que puderem. Para comprar algo, quero o menor preço possível. Tenho de vender minha mercadoria, mas a tal preço vendo pouco. Baixo-o até vender o suficiente para mim; compro o que desejo a um preço que não seja mínimo, mas razoável. O movimento consiste no equilíbrio entre oferta e demanda.
Desse modo, as coisas se separam: por um lado, temos a família, amizades, colegas, vizinhança, o que proporciona o prazer do convívio; por outro lado, temos o comércio, no qual vendemos o que produzimos e compramos o que necessitamos ou desejamos. É deste último que a economia ou prosperidade social depende.
Há, no entanto, outra ideia que é famosa em Adam Smith: a “mão invisível”. Ela, no entanto, não é um conceito, e sim uma metáfora da metodologia que está sempre por trás das investigações e da retórica do autor.
A “mão invisível” seria um modo de dizer o que faz com que os indivíduos, ao buscarem seus interesses privados, sem saber promovam igualmente o bem social. Na Riqueza das Nações, o proprietário de capital (a ideia de um tipo de riqueza que produz mais riqueza, e que não havia em outros autores) aplica-o sempre do melhor modo que encontra para ganhar mais, e isso leva a um aumento da riqueza das nações muito maior do que a interferência do Estado jamais permitiria. Mas antes disso, na Teoria dos Sentimentos Morais, a “mão invisível” já aparece: serve para destacar que, ao adquirir comodidades e luxos, o grande proprietário de terras “é levado pela mão invisível” a distribuir seus rendimentos e promover ganhos para os serviçais, agricultores e manufatores “quase” tão bem quanto cada um conseguiria, fossem as terras distribuídas.
Qual é o mistério da mão invisível? Nesses casos, é mostrar que a natureza humana, pensada como individual, conflui para a grande natureza e leva à manutenção e progresso da sociedade humana em geral. É como a peça de uma máquina, que realiza apenas seu próprio movimento, mas, conjugada com cada uma das demais que fazem o mesmo, movimenta essa máquina para a realização de seu propósito. E essa é uma analogia importante para nosso autor.
A concepção smithiana da analogia das máquinas é bem explicada em sua História da Astronomia. Ali o autor trata explicitamente da analogia entre os sistemas científicos e as máquinas que os manufatores produzem. Estes o fazem para tornar real o que querem que se realize, ao passo que o sistema é uma máquina imaginária para conectar o que já se realiza por si só, ou pela natureza. Não é possível ver ou imaginar a natureza, mesmo em um segmento, como um todo. Mas é possível retratar seu funcionamento regular a partir de partes que a experiência indica para nossa imaginação como fundamentais, causas determinantes dos fenômenos naturais. Esse é o sistema, a máquina que a imaginação concebe. Foi o que aconteceu com a astronomia ao longo de muitos séculos, com o desenvolvimento cada vez mais complexo de um sistema em que tudo, principalmente o sol, se movia em torno da Terra. Houve, no entanto, um ponto em que essa máquina encontrou seu limite e foi necessário mudar de sistema, e retratar a Terra a girar com os demais planetas em torno do sol. Como Smith aponta, com o tempo um sistema pode ter de mudar, o que provavelmente irá acontecer. Ao fim, contudo, o autor toma a liberdade de dizer que tende a pensar que o que Newton desenvolveu é uma perfeita, verdadeira e intocável formulação dos movimentos naturais.
Assim, na Teoria dos Sentimentos Morais temos uma “máquina” que move sentimentos por meio da simpatia, o que vem a constituir as regras ou princípios morais. A busca de um indivíduo pela aprovação alheia, por simpatia, faz, no entanto – é preciso observar – com que cada indivíduo razoável, mesmo que mediano, estabeleça, com o tempo, um imaginário expectador imparcial, seu próprio juiz segundo os valores de que se assegurou como dignos de aprovação e admiração ou de reprovação e vergonha. É o que Smith veio a chamar de “homem dentro do peito”, o que conduz a pessoa para o que é, segundo sua própria visão, digno de respeito, e o afasta do que é digno de vergonha – mesmo que isso não corresponda ao juízo da maioria. Aqui dá-se a variedade de personalidades e a formação de diversos grupos sociais. O ser humano não é, portanto, meramente conjunto de peças de uma máquina moral. Não deixa de haver, todavia, princípios que são gerais e causam certa regularidade de juízos e comportamentos sociais, como a proteção à vida, ao corpo e à propriedade individual, e o caráter criminoso de quem age em contrário. Na Riqueza das Nações, por sua vez, temos uma máquina movida pelo autointeresse dos indivíduos, o que leva à prosperidade do conjunto da nação. Ambas as “máquinas”, a dos princípios morais e a da prosperidade por meio do autointeresse, reúnem-se numa só, a da natureza humana em suas paixões e regramentos no convívio social.
Aqui surge algo que parece um paradoxo: os sistemas de Adam Smith são, ao mesmo tempo, uma imagem real de um todo natural e o ensino para que nossa atitude faça com que ele funcione segundo sua própria natureza. Não há, contudo, paradoxo algum, porque a explicação dos fenômenos dá-se, mesmo na filosofia natural (ciências naturais), segundo os princípios fundamentais, e suas explicações reais devem adaptar-se a circunstâncias mais específicas. Ora, na filosofia da natureza humana mostram-se princípios que diferem mais fortemente ainda a diferença entre princípios gerais e situações específicas. Nesse caso, são ao mesmo tempo a observação de como a moralidade e a prosperidade sociais se dão por natureza, e de como, na prática, o sistema real deve modelar-se o máximo possível segundo o ideal de sua naturalidade. Smith não pode negar que haja males que com grande frequência desviam a sociedade e a economia política para longe desse caminho. É preciso ensinar como devem ser as atitudes para que isso não ocorra. O Estado, por exemplo, não deve estabelecer monopólios coloniais, ao passo que as paixões erroneamente dirigem para isso.
Há, contudo, uma maléfica paixão natural do ser humano quanto à qual sentimentos contrários pouco atuam. Ela consiste no desejo de ter a submissão de indivíduos considerados inferiores que são forçados a obedecer a seu senhor, sem que este tenha nada que negociar para que realizem o que manda. É a escravização. Ana Paula Londe Silva trata muito bem do assunto em sua dissertação de mestrado na Unicamp, Adam Smith sobre a escravidão nas colônias da América e do Caribe. Aqui serei breve. Na Teoria dos Sentimentos Morais, Smith trata rapidamente da escravidão, mas de maneira condenatória ao tráfico. Em suas leituras de aula, no entanto, segundo as notas de estudantes (Lectures on Jurisprudence), teria tratado longamente da miséria da escravidão. Na Riqueza das Nações, Smith trata do caso com maior frieza: a escravidão é menos produtiva e mais custosa que o trabalho livre. Todavia, insiste o autor, geralmente haverá de existir sempre que possível, pois é fruto de uma paixão natural. Assim, se a escravidão acabou em uma pequena parte da Europa, foi somente em virtude de incidentes políticos que levaram a uma situação muito específica. Na Riqueza das Nações, Smith sustenta que foi o crescimento do comércio e da manufatura dos burgos que fez com que os senhores de terras pouco a pouco despendessem toda sua riqueza em luxos, de modo a precisar ter menos pessoas a sustentar e, ao mesmo tempo, aumentar a produtividade da terra com o fim da servidão feudal, o que se conjugava com a luta do soberano por tirar o poder dos barões e torná-los seus súditos. Quando os barões passaram a ser proprietários, e não senhores de terras, sem ter mais seus soldados, o regramento para que não houvesse guerras internas e se assegurassem as propriedades tornou-se também necessário, o que fez com que a monarquia se estabelecesse como governo com milícia, leis e magistrados.
Além desse malefício natural, há aquele de que já tratamos acima, a dos maus efeitos da grande divisão do trabalho sobre as capacidades políticas e morais dos trabalhadores, em virtude de movimentos repetitivos por horas a fio quase todos os dias. Já apontamos que isso leva à necessidade do parcial subsídio do governo à educação e à não censura da cultura circense.
Temos aí o sistema econômico na plenitude de seu funcionamento natural. Não é absolutamente perfeito em seu retrato histórico-hipotético, e há males naturais, seja devido a uma má paixão natural, seja devido ao grande desenvolvimento produtivo. É, no entanto, o sistema comercial industrial o que mais aumenta o bem-estar social, infinitamente mais que outros modos ultrapassados de ordenamento e provimento.
É frequente, porém, afirmar-se que há um pessimismo em Adam Smith, que afirmaria que esse sistema econômico levaria, ao fim, a uma catástrofe social, às guerras e gastos enormes para a manutenção das colônias, seja como pertencentes a um império e não livres, seja entre impérios para tomá-las para si, e ainda haveria os gastos excessivos do governo consigo mesmo, por suas ostentações e luxos. Isso tudo levaria a um enorme débito público, que teria de obter, via impostos variados, mais e mais recursos dos súditos, até o momento em que isso não fosse mais possível e as coisas “explodissem”.
Não vejo muito bem otimismo ou pessimismo em Smith. Distingo, porém, desvios que não resultam nem da má paixão natural da escravização, nem do mau efeito do aperfeiçoamento da produção sobre os trabalhadores, mas sim das perspectivas e paixões viciosas da população e do governo. É isso que Smith critica fortemente na maior parte do livro 4 e tragicamente no livro 5 da Riqueza das Nações
Trata-se de um desvio do comércio em relação ao sistema mais natural, este o melhor para a geração de bem-estar e prosperidade, o livre-comércio. Uma má visão e um firme preconceito, que acreditavam erroneamente que o mercantilismo e uma de suas mais importantes consequências, o colonialismo, levariam o país a uma maior riqueza, enquanto Império, implica necessariamente o sistema de monopólios e oligopólios com as colônias, o que tornava os preços de suas principais produções, o açúcar e o tabaco, muitíssimo altos, ainda que mais no primeiro caso do que no segundo. De qualquer modo, isso permitia que os produtores possuíssem escravos. Ao mesmo tempo, intensificava o envolvimento do império em guerras, assim como o endividamento de seu governo, cujos gastos envolvem a ostentação do próprio governo como modo de orgulho quanto à grandeza do império. Nesta gastança e endividamento, o governo tem de extrair cada vez mais recursos de sua população, com o aumento do valor e da variedade de impostos, o que em algum momento chega ao seu limite. É por isso que, ao fim da Riqueza das Nações, na última página, Smith clama pela libertação das colônias e ajustes dos gastos do governo da Grã-Bretanha à sua mediania. Que as nações europeias se ajustassem ao sistema natural do livre-comércio e um governo com poucos gastos; que se convencessem os políticos e o público de que isso é o melhor; do contrário, haveria uma completa ruína da Europa. Assim, após esfriar emoções, podemos fazer uma síntese. A sociedade comercial é possível portadora de três tipos de malefícios: males tendentes a ocorrer devido a um desvio paradoxalmente próprio ao sistema da natureza humana, a paixão natural pela escravização, males naturais ao sistema econômico, como os malefícios aos trabalhadores, e males devidos ao desvio da forma correta do sistema, como o mercantilismo. O primeiro parece poder reduzir-se muito, se é que não se extinguir, com o estabelecimento do livre-comércio e a consequente competição que envolve custos; o segundo parece poder resolver-se parcialmente pela educação e cultura; e o terceiro deveria e poderia extinguir-se por meio da saída do mercantilismo e instauração do livre-comércio. O último, no entanto, cuja existência tem a causa menos natural e mais frágil de todas, tem, contudo, uma raiz já muito aprofundada e é o mais difícil de se acabar. Poderia, no entanto, manter-se até a ruína do sistema econômico e social mais aperfeiçoado que já havia existido? A resposta fica em aberto.
Como conclusão, podemos afirmar que a Riqueza das Nações é uma obra conforme à Teoria dos Sentimentos Morais nos pontos mais relevantes de seus sistemas teóricos. Nesta, a propriedade e a vida são leis sagradas para a sociedade, o que torna o comércio uma concorrência aprovada em tudo que seja honesto. Naquela, é necessária a justiça e o autointeresse para que haja o próspero suprimento da nação, com uma liberdade de comércio que lhe é própria em concepção teórica, e deve ser na prática a maior possível. No conjunto, instituem-se, no âmbito teórico, e de fato instituíram-se no âmbito prático (embora em menor grau) as maiores segurança, liberdade e prosperidade que o ser humano pode ter.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Filosofia? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Alexandre Amaral Rodrigues: Respondo aqui com o que em Adam Smith tem sido historicamente estudado, debatido e influente no pensamento não só filosófico, mas nas ideias que se difundiram e ações correspondentes.
Nesse sentido, sua principal contribuição filosófica foi a explicação do comércio, incluindo a produção fabril, como algo fundamental e aquilo que perfaz a integração da extensa sociedade civil. Os rankings, como se diz, ou seja, os níveis sociais, passaram então a ser formados por pessoas com direitos iguais, diferenciados segundo o tipo de “investimento” que fazem na produção, ou seja, trabalho, capital ou terras, ao qual corresponde um tipo de rendimento: salário, lucro ou renda da terra. A definição clara da importância do capital como a riqueza acumulada por poupança ou herança, que não se gasta com a compra de mercadorias para consumo, mas, ao contrário, investe-se em meios de produção, de modo a aumentar-se a si mesmo e sempre reinvestir-se em boa parte, e assim causar a prosperidade nacional, foi certamente uma de suas formulações mais inovadoras no quadro do nosso pensamento, tanto filosófico como popular.  Embora a produção se faça pelo trabalho imediato, é o capital que determina seu emprego e sua produtividade.
Eis aí uma concepção da união social e da condição de cada um segundo seu lugar na produção de riquezas. No conjunto, observada de maneira “imparcial”, a sociedade não mais se divide entre “nobreza”, pela antiguidade familiar e pela posse de terras; ricos mercadores, que, ambiciosamente, arrancam o máximo possível de ganhos para si; trabalhadores administrativos, uma espécie de classe média; trabalhadores de manufatura, que ganham mal, mas ao menos têm alguma existência social; e o que resta para a população “vulgar”, os trabalhadores rurais. Agora a sociedade passa a estruturar-se mecanicamente e segundo o que cada parte colabora para a produção de riquezas, ao que corresponde seu ganho. A sociedade, portanto, é como uma máquina, em que cada parte tem sua função, e a isso corresponde seu posicionamento.
Ao governo, que não é parte da máquina, cabe assegurar os direitos dos indivíduos, particularmente a vida, a propriedade e o poder de ir e vir, assim como proteger o conjunto da sociedade contra ataques externos, além de investir no que possa melhorar a condição produtiva e que o capital não pode fazer, como abrir estradas, construir pontes, e contribuir com parte da educação e cultura dos pobres. Não deve se endividar com gastos excessivos, com guerras e monopólios e colônias ou qualquer coisa inútil, e só deve interferir o necessário. Deve prevalecer o livre-comércio.
Essa concepção da sociedade como interativa, como composta pelas partes que a fazem “funcionar”, está tão presente para nós que parece ser o pano de fundo da visão de nossa convivência em sentido amplo. O grupo família e amigos/as é visto como aquele em que nossa afetividade realmente atua. Já o grande conjunto social é onde obtemos as provisões básicas e a riqueza para nossa família, pela compra ou venda de trabalho ou mercadorias. A ideia da estrutura social como ordenada e comandada por capital/trabalho foi o que predominou durante o século XIX, seja no liberalismo, como em Jean-Baptiste Say e John Stuart Mill, seja na crítica radical, como em Mikhail Bakunin e Karl Marx.
As críticas ao liberalismo vão desde a necessidade de intervenção política para a melhoria da distribuição de renda – cuja concentração, para nosso autor, não era prejudicial ao aumento do bem-estar dos pobres, e agora é criticada e vista contrariamente – até a ideia de revolução e destruição ou desconstituição da estrutura social vigente, vista agora como pautada na apropriação individual da produção coletiva por meio do capital, concepção principalmente de Karl Marx. Esta é uma questão filosófica, mas, de maneira muito forte e prática, imbrica-se no ideário da luta política. No século XIX, Marx e Bakunin, com suas diferentes concepções de socialismo, participaram da Comuna de Paris (1871). Já no século XX, sabemos serem os marxistas historicamente muitíssimo importantes, especialmente pelas revoluções russa, sob o comando de Lênin, Stalin e Trotsky (com a instauração da União Soviética), chinesa, sob a condução de Mao Tsé-Tung, e cubana, sob o comando de Fidel Castro, Raul Castro, Che Guevara e Juan Almeida.
Mas, se por um lado a concepção de Smith influenciou e compôs fortemente os elementos da crítica social, por outro lado constituiu o pano de fundo do liberalismo e, embora as teorias neoliberais descartem a ideia de níveis sociais compostos pela divisão capital/trabalho e afirme que todos são indivíduos em condição de igualdade que, por certa concepção de utilidade, buscam o melhor para si, popularmente não é isso que se concebe, e sim a diferença entre os proprietários de capital e os trabalhadores.
Mais descartado ainda pelas teorias neoliberais é o trabalho como o que corresponde ao valor de troca dos bens. Haveria o uso racional de recursos produtivos pessoais, sejam quais forem, mas seu valor comercial se estabeleceria meramente pela oferta e demanda. Muitas dessas teorias não aceitam sequer ser chamadas de liberais, mas apenas constatações do modo “racional” de distribuição de recursos supostamente sempre escassos. Ainda assim, a garantia da propriedade, o livre-comércio e a não intervenção do estado ou de governos permanecem vigentes para eles como o mais “racional”.
A “mão invisível”, ou seja, a condução pela natureza das paixões individuais de ganho para o ganho simultâneo do bem público, foi descartada por quase todas as atuais correntes liberais econômicas e filosóficas. Importa o uso da Razão individual (possivelmente apenas como eficaz descrição dos fenômenos, como sustenta o economista Milton Friedman; ou como fato, como, por exemplo, Hayek sustenta); mantém-se, contudo, a ideia de que a busca do bem pessoal é o que promove o bem social. Filosoficamente, destaca-se Jürgen Habermas, com o conceito de racionalidade na ação comunicativa.
Por outro lado, aquilo que Smith comentou com brevidade, a necessária educação básica e o incentivo à cultura dos trabalhadores, foi tão forte que até os neoliberais concordam com isso, embora para eles não necessariamente o estado deva fazê-lo de modo direto.
A mesma concordância se dá quanto à inutilidade de se fazer guerra, a não ser como defesa. Aqui, no entanto, acrescentou-se uma exceção, algo que na época de Smith não poderia se colocar: a interferência direta e armada de um estado sobre outro, supostamente caso aquele país necessite do uso da força para manter a “liberdade individual” básica, o direito de propriedade – como sustentou Friedrich August von Hayek ao defender a derrubada de Salvador Allende e a constituição da ditadura de Pinochet no Chile.
Já quanto à especificidade do estabelecimento da moral por meio de um mecanismo, dentro do qual as paixões se movem segundo a simpatia ou empatia, a Teoria dos Sentimentos Morais foi uma espécie de ápice do que se concebeu na Escócia do século XVIII, algo que Smith torna teoricamente preciso por sua sistemática. Essa concepção foi, no entanto, quase completamente desconsiderada ao longo dos séculos XIX e XX. Agora, contudo, a questão da moralidade e sua relação com a “empatia” começa a ser retomada por autores filosóficos, como, por exemplo, Jesse Prinz.
Filosoficamente, coloca-se também uma questão interessante, que é o quanto a concepção smithiana está introjetada em nosso modo de pensar a sociedade e a vida individual, mesmo quando somos críticos da concentração de renda ou do próprio capitalismo. Noam Chomsky e, de maneira diversa, Michel Foucault, são exemplos de tal questionamento.
Creio que dentre as concepções smithianas que repercutem na vida prática há uma distorção, elaborada para que se propague popularmente, da relação trabalho e capital, que, incentivada por teorias chamadas neoliberais tanto na economia como na sociologia, inclui agora um “empreendedorismo” que louva a aplicação de pequenos valores para a abertura de microempresas. Isso, no entanto, envolve o emprego informal, com muito poucos direitos, como um modo de “empreendedorismo”. É como se o trabalhador fosse um microempresário cuja mercadoria fosse seu próprio trabalho, que ele vende a certo preço. Assim fazendo, não teriam outro direito que não receber o pagamento pela compra de seu trabalho, cujo preço se estabeleceria por oferta e demanda. Há difíceis lutas, contudo, para que haja direitos trabalhistas nessas áreas, e alguns têm sido conquistados, embora a força da exploração continue a ser muito mais forte.
Quanto à ideia prosperidade contínua da sociedade, insere-se agora a questão ecológica, mais recentemente chamada de sustentabilidade, que luta por ser respondida com medidas de redução de prejuízos ao ambiente em muitos aspectos, por regras que se apliquem ao capital fabril e comercial, com o ideal de alcançar o equilíbrio entre produção e meio ambiente. Fica uma interrogação mais imediata: é possível manter um sistema que necessita continuamente da prosperidade em harmonia com a natureza? 
São algumas questões filosóficas e práticas que se propõem segundo um processo real, em cujo momento primário de plena instauração Adam Smith formulou de maneira sistemática, e assim proporcionou uma influente visão da nova sociedade como um todo.
Certamente muito mais aspectos e interpretações da obra do grande Adam Smith, o autor que marcou profundamente todas as concepções sociais, serão propostas agora, nas pesquisas impulsionadas pela celebração de seus 300 anos.

Alexandre Amaral Rodrigues é mestre e doutor em Filosofia pela FFLCH. O Doutorado incluiu um ano de estágio de pesquisa (2014-2015) em Paris I - Panthéon-Sorbonne. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia Moderna e Ética e Filosofia Política.