Publicação de Macunaíma: o herói sem nenhum caráter

Criado pelo modernista Mário de Andrade, a obra exalta a cultura brasileira por meio do caricato personagem de Macunaíma

Por
Astral Souto
Data de Publicação

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" Macunaíma é a obra mais importante da primeira geração modernista ou do chamado modernismo "heroico", que agitou os meios literários e artísticos na década de 1920" diz o professor Ivan Francisco Marques / Arte por Astral Souto.

No ano de 1928, a obra mais importante da primeira geração do modernismo, publicada no mesmo ano de Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, foi lançada. Macunaíma, obra-prima de Mário de Andrade, conta a história do personagem de nome homônimo cujo enredo acontece ao redor de suas aventuras e peripécias. “O herói sem nenhum caráter”, subtítulo do livro, nasceu em uma tribo amazônica. Macunaíma é um personagem malandro, mulherengo, ardiloso, astuto e sagaz, que se contagia com outras culturas e tem o poder de se metamorfosear, tendo aparência e personalidade inconstantes.
Na história, há uma alegoria à formação racial do Brasil, Macunaíma e seus irmãos passam por uma fonte mágica em que o protagonista, antes preto retinto, torna-se branco, enquanto seus irmãos permanecem da mesma forma, como negros criados na cultura indigena. A travessia da fonte também mostra o distanciamento entre o herói e sua cultura e a oscilação de suas características.
O livro apresenta a cultura brasileira e a exalta, usando de mitos brasileiros, mas também com uma visão crítica do país. Segundo Ivan Francisco Marques, professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, “trata-se de uma obra dilacerada entre o amor ao Brasil e a consciência negativa sintetizada no mote ‘pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são”. Mário de Andrade usou em Macunaíma uma linguagem mais próxima da coloquial. Tanto para o autor, quanto para outros entusiastas do movimento modernista, a diferenciação do que é falado para o que é escrito não fazia sentido. Na obra, Mário de Andrade se debruça mais sobre os estudos da oralidade aproveitando falas e gírias regionais brasileiras.
Por ser um livro feito a partir de diferentes e distintos elementos literários, a classificação de Macunaíma foi complexa. Mário, no começo, identificou o livro como romance e fantasia e, posteriormente, como uma rapsódia.

Confira na íntegra a entrevista com o professor Ivan Francisco Marques concedida à Comunicação Social da FFLCH:

Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Qual a importância de Macunaíma para a Literatura Brasileira?

Ivan Francisco Marques: Macunaíma é a obra mais importante da primeira geração modernista ou do chamado modernismo "heroico", que agitou os meios literários e artísticos na década de 1920. A princípio, os modernistas foram chamados de "futuristas" e sua preocupação maior era a atualização da produção artística brasileira em sintonia com as novidades introduzidas pelas vanguardas europeias do início do século 20. Porém, já no primeiro livro brasileiro de poesia moderna, Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade, podemos ver despontar as imagens do nacionalismo estético que, a partir de meados da década, daria forma e especificidade à vanguarda brasileira. Macunaíma é a síntese desse período. Publicado em 1928, no mesmo ano em que apareceu o Manifesto antropófago, de Oswald de Andrade, o romance que seu autor preferia chamar de "rapsódia" é uma obra de alta complexidade, seja por conjugar formas arcaicas da narrativa com experimentações vanguardistas do século 20, seja por constituir, ao mesmo tempo, uma compilação afetiva de mitos brasileiros e um retrato crítico do país. O "herói da nossa gente", epíteto dado a Macunaíma logo na primeira frase, é sobretudo considerado um "herói sem nenhum caráter", que é a fórmula destacada no subtítulo do livro. Trata-se de uma obra dilacerada entre o amor ao Brasil e a consciência negativa sintetizada no mote "pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são". A obra se inscreve numa importante linhagem da literatura brasileira que é a dos personagens pícaros e malandros. Ao longo do último século, foi marcante a sua presença na cultura brasileira, como se pode comprovar pelas bem-sucedidas adaptações que apareceram no cinema e no teatro, nas décadas de 1960 e 1970, dirigidas por Joaquim Pedro de Andrade e Antunes Filho.

Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Fale um pouco sobre a fonte mágica que Macunaíma e seus irmãos encontram na expedição até São Paulo e como isso se relaciona com a questão racial no Brasil?

Ivan Francisco Marques: A expedição a São Paulo, que retira os personagens de seu ambiente primitivo, é motivada pela busca da muiraquitã, o amuleto sagrado de Macunaíma. Paradoxalmente, ao longo dessa jornada, o herói cada vez mais se distancia das suas origens, deixando-se contaminar pelos códigos da civilização (ou melhor, de outra civilização, diferente da tropical em que ele havia surgido). No caminho entre a selva e a cidade, ao mergulhar na fonte mágica, ele deixa de ser "preto retinto" e se torna branco, enquanto os irmãos permanecem como eram. A cômica passagem que, em sua origem mitológica, serviria para explicar a formação racial compósita do Brasil, acabou por dar margem à expressão do individualismo e do racismo do protagonista. O episódio é também importante por revelar o caráter metamórfico e indeterminado do herói, que ao longo da narrativa sofre diversas metamorfoses, sendo a mais perniciosa, na visão do autor, a que é motivada, na cidade, por sua atração pelas culturas estrangeiras.

Serviço de Comunicação Social da FFLCH: O que é uma rapsódia? Por que a obra de Mário de Andrade é caracterizada dessa forma?

Ivan Francisco Marques: O termo foi utilizado por Mário de Andrade em virtude do gênero indefinido, isto é, da natureza misturada e inclassificável da obra. Ele chegou ainda a chamá-la de "romance" (no sentido folclórico) e de "fantasia" (no sentido musical). Optou por "rapsódia" ao levar em consideração o caráter compósito do livro, pois rapsódia é o nome que se dá tanto à obra musical composta com temas populares como à narrativa que mistura motivos fabulatórios tradicionais, exatamente como ocorre em Macunaíma.

Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Por que Mário de Andrade optou por escrever em uma linguagem mais próxima da coloquial em Macunaíma?

Ivan Francisco Marques: A busca de uma linguagem brasileira, que exprimisse o nosso "modo de ser", era uma obsessão antiga, levada a cabo tanto por José de Alencar, no período romântico, como por Lima Barreto, já no início do século 20. A partir do modernismo, essa pesquisa linguística foi radicalizada e teve em Mário de Andrade um dos seus maiores entusiastas. Para os modernistas, não fazia sentido a oposição entre língua falada e língua escrita, a primeira bastante dinâmica, em constante transformação, e a segunda aprisionada nas regras da gramática lusitana. Para Mário de Andrade, a nossa fala coloquial deveria ser estilizada (não simplesmente transcrita) nas obras literárias. Nessa direção, ele foi o escritor modernista mais ousado nas experimentações, que ele mesmo reconhecia como exageradas, mas necessárias para a revitalização da linguagem literária. Macunaíma, sua obra-prima, é o momento de maturidade dessas pesquisas, que envolviam também um impulso de "desgeograficação", isto é, de aproveitamento simultâneo das diversas falas regionais. Por esse motivo, os romancistas da década de 1930, como José Lins do Rego, consideraram sua língua muito cerebral e artificial, observação que, mais tarde, também seria feita a respeito da linguagem de Guimarães Rosa, que deu continuidade às pesquisas de Mário de Andrade.

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Ivan Francisco Marques é professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e autor dos livros: Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros rapazes de Belo Horizonte (2011), Modernismo em revista: estética e ideologia nos periódicos dos anos 1920 (2013), Para amar Graciliano (2017), Orides Fontela (2020) e João Cabral de Melo Neto: uma biografia (2021).