Publicação de Dois Irmãos, de Milton Hatoum

Obra aborda conflitos fraternais e evidencia a sociedade imigrante no Norte brasileiro

Por
Gabriela César
Data de Publicação

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"Dois Irmãos conquistou merecido espaço no cânone literário brasileiro, teve e ainda tem uma recepção positiva mundo afora", diz pesquisador Lucius de Mello / Arte: Gabriela César

Dois Irmãos, romance de Milton Hatoum, foi publicado no início dos anos 2000 e aborda a realidade brasileira entre a Segunda Guerra Mundial até o período da ditadura militar, deslocando a narrativa para além dos grandes centros e levando o leitor a conhecer o lado social da Amazônia.

A obra centra-se nos conflitos entre os irmãos gêmeos idênticos Yaqub e Omar, filhos de Halim e Zana, imigrantes libaneses. Yaqub se muda para o Líbano ainda jovem e desenvolve um caráter sério e acadêmico, opondo-se a Omar, que permanece em Manaus na ociosidade e na boêmia. As personalidades opostas geram uma série de conflitos dentro da obra, fazendo com que o leitor seja profundamente inserido na realidade da família, descobrindo, assim, os confrontos e os mistérios que os rodeiam.

Entre as questões mais importantes da narrativa, está a busca do reconhecimento da paternidade de Nael, filho da empregada da família e narrador da história. O pai verdadeiro de Nael não é divulgado durante o romance, mas há fortes indícios de que ele seja um dos gêmeos ou Halim, o que liga diretamente o narrador à família libanesa.

O relato desenvolvido em Dois Irmãos tem uma estreita convergência com a vida pessoal de Milton Hatoum, pois o autor nasceu em Manaus e possui descendência libanesa por parte de pai e de seus avós maternos, assim como os personagens Yaqub e Omar. Além disso, Hatoum busca evidenciar, em seu livro, narrativas bíblicas e da mitologia ameríndia, principalmente o embate entre irmãos.

O romance foi e continua sendo amplamente divulgado no Brasil e em outros lugares do mundo, conforme afirma o pesquisador Lucius de Mello, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP): “Penso que todo esse sucesso é resultante do talento de Milton Hatoum mas, sobretudo, da atualidade dos temas tratados em sintonia com tendências cultuadas na literatura contemporânea”.

O pesquisador também fala sobre o interesse acadêmico nacional em pesquisar sobre o romance, especialmente na Universidade de São Paulo (USP), que, hoje, mantém o livro como uma das leituras obrigatórias de seu principal vestibular, a FUVEST. 

Além do interesse da academia, uma minissérie de Dois Irmãos baseada no romance de Hatoum foi produzida pela Rede Globo. Esses fatos exemplificam a vasta relevância da obra e o porquê de ela ter conquistado espaço no cânone literário brasileiro.

Confira a entrevista completa com Lucius de Mello concedida ao Serviço de Comunicação Social da FFLCH:

Serviço de Comunicação Social: Poderia falar um pouco sobre o enredo principal em Dois Irmãos e qual a intersecção da narrativa literária com a história pessoal do autor Milton Hatoum?

Lucius de Mello: O romance Dois Irmãos chegou às livrarias brasileiras na virada do século (2000), onze anos após o lançamento do primeiro livro de Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente (1989). Um intervalo visto com bons olhos por Leyla Perrone-Moisés: “Valeu a pena esperar […] Dois irmãos revela um notável amadurecimento do romancista”, escreve Perrone-Moisés no ensaio A cidade flutuante (2007).

O enredo transcorre entre o período da Segunda Guerra até os anos da ditadura militar e apresenta um retrato multifacetado da história social e política da Amazônia e do Brasil. No centro da narrativa estão os gêmeos Yaqub e Omar, filhos de Halim e Zana (imigrantes libaneses). Idênticos na aparência, os irmãos têm temperamentos opostos e destinos bem diferentes. Yaqub é enviado para o Líbano quando criança, torna-se um homem reservado e faz carreira como engenheiro em São Paulo. Omar, o preferido da mãe, é ocioso, alcoólatra e boêmio.

O narrador, Nael, é personagem e testemunha dos acontecimentos construídos e desconstruídos com pedaços de memórias. Enquanto os gêmeos criam conflitos para deixar de pertencer àquele mundo, Nael narra para tentar se conectar a ele, descobrir seu lugar no mundo e sua própria identidade. Ele é filho da empregada da família, “a cunhantã mirrada, meio escrava meio ama, louca para ser livre.” No entanto, o nome verdadeiro do pai biológico de Nael não é revelado. O leitor é lançado num jogo de pistas e incertezas sobre quem seria o seu pai. Além dos nomes de Omar e Yaqub, o de Halim também desperta suspeitas. O fato de o narrador bastardo ser um agregado no casarão libanês lhe garante um ponto de vista meio assimilado meio deslocado. Nael é o único capaz de olhar com algum distanciamento para o passado, a fim de compreender sua condição de marginalizado e exilado do seio familiar.

A trama principal recupera os relatos milenares, revestidos de subjetividades e simbologias, presentes na mitologia ameríndia e na Bíblia, como um dos gêmeos hatounianos mesmo anuncia: “[…] se houver violência será uma cena bíblica”. Na minha pesquisa de mestrado, Dois irmãos e seus precursores: o mito e a Bíblia na obra de Milton Hatoum ( Humanitas, 2014), orientada pela Profa. Dra. Berta Waldman, elenco e analiso vestígios de episódios e personagens da Bíblia presentes na obra hatouniana. Embates fraternos narrados no livro do Gênesis: Caim e Abel, Esaú e Jacó, José e seus irmãos etc; fragmentos das Sagradas Escrituras espelhados na selva amazônica. Zana, por exemplo, é uma versão selvagem de Rebeca. Também trago à luz o diálogo com as lendas estudadas por Sérgio Buarque de Holanda assim como Macunaíma e sua irmã gêmea Piá.

Entre os povos indígenas brasileiros, Alfred Métraux (1902-1963), confirma-nos a importância da saga dos gêmeos inimigos como história geradora de sentidos. Segundo o antropólogo, na mitologia dos Tupinambás aparecem dois irmãos gêmeos, cujo papel chega a ser quase tão importante quanto o do próprio herói-civilizador. Na saga mítica dos Tupinambás, os gêmeos em disputa acabam fundando o mundo a partir de seus gestos de violência. Digamos que, nesta passagem mítica, a rivalidade metaforiza as forças e as pulsões do cosmos, energias em movimento a girar a terra e a movimentar as águas e as nuvens. Essa dialética das relações humanas estaria no nível dos movimentos cósmicos. Segundo Métraux, “Tamendonare e Aricoute eram dois irmãos rivais, divididos por seus diferentes temperamentos. Aricoute, intrépido e belicoso, desprezava seu mano, a quem reputava poltrão” (Métraux, 1979). Descendente dos povos indígenas da Amazônia, o narrador Nael revela-se o mais legítimo herdeiro de toda ancestralidade mitológica, originária das lendas e mitos que envolvem os gêmeos inimigos em relatos tão ou mais milenares que a Bíblia.

Considerando que esse tema também já foi explorado à exaustão desde os míticos Dióscuros gregos, filhos de Zeus e Leda, esposa do rei de Esparta, Esaú e Jacó (da Bíblia e Machado de Assis), os Irmãos Corsos de Alexandre Dumas, entre outros exemplos, é preciso realçar que a tópica dos gêmeos que se odeiam foi revigorada por Hatoum. O autor frequenta seus precursores, recupera, inclusive, Honoré de Balzac ao se inspirar na técnica do retorno dos personagens, trazendo Emilie, protagonista de Relato de um certo Oriente, para visitar Zana nas páginas finais de Dois Irmãos. Porém, com a força da sua criação romanesca, Hatoum consegue desnomear suas influências e impor o seu nome.

A Amazônia de Dois Irmãos e de Relato de um certo Oriente é construída com as imagens da Amazônia na qual Milton Hatoum viveu até os 15 anos de idade. Dessa forma, o cenário e as histórias desses dois romances se confundem com a vida real do autor nascido em Manaus em 1952. Seu pai e seus avós maternos também eram libaneses. O pai de Hatoum cresceu no Líbano sob o mandato francês. As dificuldades do recomeço longe do Oriente, enfrentando desafios na selva brasileira, foram praticamente as mesmas tanto para os personagens como para a família de Hatoum. Na infância, o escritor ouvia histórias de seu avô e dos vizinhos, histórias de viagens, piadas e dramas dos imigrantes. Ao criar figuras e narradores empenhados em construir mundos romanescos com a matéria-prima da memória, Hatoum conecta a própria realidade a sua ficção e mantém vivas as suas lembranças e toda subjetividade que elas traduzem.

Serviço de Comunicação Social: Dois Irmãos recebeu o prêmio Jabuti em 2001 e, hoje, encontra-se na lista de leituras obrigatórias da Fuvest. A partir disso, qual a importância da obra para a literatura nacional e como ela ressoa na literatura mundial?

Lucius de Mello: Dois Irmãos conquistou merecido espaço no cânone literário brasileiro, teve e ainda tem uma recepção positiva mundo afora (França, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Líbano, entre outros países). Penso que todo esse sucesso é resultante do talento de Milton Hatoum mas, sobretudo, da atualidade dos temas tratados em sintonia com tendências cultuadas na literatura contemporânea. Destaca-se assuntos como: a curiosidade pela cultura e pelos mistérios amazônicos, a experiência do viajante por entre-lugares, a errância , o exílio, a dor de quem vive longe da pátria e o recomeço na terra distante na qual a língua e os costumes desafiam os imigrantes e refugiados a reinventarem a própria identidade. Esses tópicos até hoje são comuns aos refugiados que continuam a deixar o Oriente Médio fugindo das guerras e perseguições políticas.

O bastardo narrador Nael, apesar de ter nascido em Manaus, também vive a experiência de um exílio simbólico marcado pela invisibilidade e rejeição de sua família biológica. Mesmo assim ele não se deixa calar, inscrevendo-se na tradição dos narradores não confiáveis, bisbilhoteiros, confidentes, que, do quarto dos fundos, espia e narra sua história vista e apreendida por seu olhar marginal. Nael constrói a própria identidade recolhendo fragmentos das memórias que o velho Halim lhe confidencia ao comentar o drama de estar longe da terra natal. Um retrato romanesco, porém fiel e atual dos movimentos populacionais no planeta.

Segundo a ACNUR, Agência da ONU para Refugiados, até o fim de 2023, estimava-se que 117,3 milhões de pessoas em todo o mundo foram forçadas a se deslocar devido a perseguições, conflitos, violência, violações de direitos humanos e eventos que perturbaram seriamente a ordem pública. Com base em dados operacionais, a ACNUR estima que o deslocamento forçado continuou a aumentar nos primeiros quatro meses deste ano e, até o fim de abril de 2024, é provável que tenha ultrapassado 120 milhões. Não por acaso, o tema tem inspirado romances, narrativas, relatos e ensaios autobiográficos, na longa tradição da investigação de si mesmo através da literatura e da linguagem.

Serviço de Comunicação Social: Como a obra é inserida, estudada e recebida atualmente no contexto acadêmico da FFLCH (baseando-se no seu conhecimento e experiência)?

Lucius de Mello: Na época em que defendi meu mestrado sobre Dois Irmãos (2013), havia um grande interesse acadêmico por este romance na FFLCH e em outras universidades brasileiras. Encontrei uma volumosa fortuna crítica sobre o tema entre pesquisadores nacionais, especialmente entre os uspianos. No ano seguinte, a minha dissertação foi publicada, em livro, pela editora Humanitas/ USP com apoio FAPESP, o que reforça o interesse da USP em promover a obra de Hatoum. Em janeiro de 2017, o programa FFLCH Conversa do Serviço de Comunicação Social da FFLCH gravou uma entrevista comigo e com minha orientadora, profa. Berta Waldman, sobre minha pesquisa. Na época, estreava na Rede Globo a minissérie Dois Irmãos baseada no romance de Hatoum.

De 2014 para cá, envolvido na investigação do meu doutorado sobre a influência da Bíblia na obra de Honoré de Balzac e o consequente desejo do autor francês em promover uma revolução na espiritualidade humana e no pensamento religioso, distanciei-me dos trabalhos sobre Hatoum. No entanto, entre 2020 e 2022, passei uma temporada morando e pesquisando em Paris com apoio da CAPES e durante meu estágio na Sorbonne Université fui recebido e orientado pelo Prof. Dr. Michel Riaudel, um dos tradutores de Milton Hatoum na França. Neste período, testemunhei a força da literatura de Hatoum entre os franceses ao ver seus romances bem expostos nas livrarias parisienses.

Suponho que, atualmente, com Dois Irmãos pontuando na lista das leituras obrigatórias do vestibular da FUVEST, o interesse e os estudos críticos sobre este romance tenha ganhado ainda mais fôlego entre os alunos e pesquisadores da FFLCH. Nada surpreendente para o talento deste ficcionista raro que desde suas primeiras obras tem enriquecido a literatura brasileira com sua pena genuinamente nacional.

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Lucius de Mello é doutor em Letras pelo Programa de Letras Estrangeiras e Tradução - FFLCH/USP com estágio na Sorbonne Université - Paris, França. Sua área de pesquisa concentra-se nos Estudos Literários e Culturais. Ademais, é escritor e jornalista, sendo finalista do Prêmio Jabuti em 2003 com a obra Eny e o Grande Bordel Brasileiro (Ed. Objetiva, 2002 e Editora Planeta, 2015).