"O Capital", de Karl Marx, é publicado pela primeira vez

Obra é considerada uma das mais influentes das ciências humanas e faz crítica à economia política moderna

Por
Pedro Fuini
Data de Publicação

O Capital de Karl Marx
"Até hoje, não há explicações sobre as crises econômicas que não recorram à natureza do capital exposta por Marx”, afirma Vera Cotrim. (Arte: Renan Braz)

Em 14 de setembro de 1867, ocorreu a primeira publicação de O Capital - Crítica da Economia Política, do filósofo alemão Karl Marx. Dividida em três volumes, a obra faz uma análise profunda do capitalismo e uma crítica à economia política moderna. Além de ser o principal trabalho de Marx, O Capital é uma das obras mais influentes nas ciências humanas.

Vera Cotrim, doutora em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, explica que Marx partiu da compreensão de que a economia política moderna foi desenvolvida atendendo aos interesses de uma classe social em ascensão: a burguesia (a classe social que detém os meios de produção).

Para ele, as teorias econômicas de autores como Adam Smith e David Ricardo possuíam um entendimento limitado do capitalismo, devido ao interesse da burguesia de afirmar seu modo de vida como o único capaz de levar a sociedade à prosperidade. “Marx procura responder às mesmas questões propostas pela economia moderna – de onde vem a riqueza, como ela se produz e é distribuída – mas a partir de uma perspectiva nova, que é a da classe trabalhadora”, explica Cotrim. O alemão traça a origem histórica do modo de produção capitalista, bem como seu desenvolvimento e suas contradições por natureza.

Cotrim explica que, na análise contida nos três volumes que compõem O Capital, Marx apresenta desde as relações mais gerais até as mais imediatas da economia capitalista, expondo “relações fundamentais e que não são aparentes na vida social cotidiana para progressivamente alcançar a superfície deste modo de vida”.

Em sua análise, Marx lança mão do conceito de capital, que segundo a pesquisadora  é definido como “valor que se valoriza, ou seja, uma dada magnitude de valor incorporada em dinheiro, empregada de modo tal que, ao final do processo, retorne ampliado a seu proprietário”. Esse processo pode ocorrer pelo comércio, pela revenda de mercadorias, pelo empréstimo de dinheiro a juros, por exemplo. O capital é anterior ao capitalismo, sendo observado, por exemplo, na expansão comercial europeia, quando era comum a valorização do dinheiro por meio da compra de produtos baratos em um mercado para vender mais caro em outro.

 

IMPORTÂNCIA

Ao comentar sobre a importância e atualidade da obra, Cotrim analisa que Marx foi contemporâneo à cisão da classe trabalhadora e da burguesia como classes distintas, ao mesmo tempo em que se forma e consolida um sistema político-econômico inadequado e oposto aos interesses da classe menos favorecida (os trabalhadores) – que inclusive contribuiu para as revoluções que alçaram a burguesia à condição de classe dominante. A partir de então, muitos dos movimentos de trabalhadores e revoluções que se seguiram, nos séculos seguintes, foram em alguma medida influenciados pelas análise do autor de O Capital. “Além disso, as tendências do capitalismo indicadas por Marx n’O Capital se concretizaram. Até hoje, não há explicações sobre as crises econômicas que não recorram à natureza do capital exposta por Marx”, afirma.

Karl Marx já foi tema de outra reportagem do Hoje na História, que você pode ler clicando aqui.

Confira na íntegra a entrevista com Vera Cotrim:

 

Serviço de Comunicação Social: O que caracteriza o marxismo?

Vera Cotrim: Para falar de marxismo, antes é preciso falar da originalidade de Marx. Embora o pensamento de Marx não possa ser identificado diretamente ao marxismo, foi ele quem conferiu o nome e a base primeira desse amplo movimento e concepção que, com toda a sua multiplicidade, está presente em todas as partes do mundo, e é referência necessária a toda e qualquer tentativa e perspectiva de transformação social popular. O pensamento de Marx se caracteriza antes de tudo por aderir à perspectiva da classe trabalhadora, em oposição ao viés da classe burguesa a partir do qual o pensamento moderno se construíra. 

É no contexto das lutas dos trabalhadores e a partir da sua perspectiva que se forma o pensamento de Marx, quer dizer, emerge historicamente uma nova perspectiva de vida, de mundo, de futuro e Marx é o pensador que se põe a olhar o mundo a partir desse novo viés. Essa nova perspectiva o leva a um acerto de contas com todo o pensamento moderno, e daí a toda uma Weltanschauung [visão de mundo] verdadeiramente original. 

Na origem do pensamento marxiano se encontram críticas de caráter fundante e ontológico, no sentido de que alcançam as próprias definições de ser. São dirigidas a três grandes áreas do pensamento moderno: 1. ao idealismo, à dicotomia de corpo e espírito, à prioridade da consciência sobre o ser; à prioridade da razão na caracterização do ser humano, em detrimento de seu caráter sensível; à oposição de razão e moral, de um lado, e as paixões, de outro; à naturalização de estruturas e unidades sociais, como a família e a propriedade; 2. ao Estado, ao direito e à própria política como formas naturais e/ou elevadas de organização da sociedade, à sua suposta neutralidade e à sua naturalização como formas próprias de toda civilidade; 3. à economia política clássica, que estabelece a propriedade privada como forma natural de apropriação e o valor como forma própria e natural do produto do trabalho humano.

Pela primeira vez na história ocidental desde a emergência do pensamento medieval e passando por toda a modernidade, o ser humano e o mundo mesmo deixam de ser compreendidos como compostos por duas substâncias, uma material, natural, extensa, corpórea, e outra espiritual, anímica, consciente. A partir do viés da classe a quem recai o trabalho manual, prático, Marx pode conceber o ser humano como “natureza humanizada”, como corpo objetivo que, a partir da sua própria atividade sensível e da apreensão dos objetos que cria para si, constitui como humanos os seus sentidos e com eles conforma a sua interioridade, suas paixões e sua consciência, numa palavra a sua subjetividade.

A caracterização do ser humano com anfíbio, pertencente a dois mundos, que vem desde as teologias medievais e se estende até Hegel, bem como a sua distinção específica como ser animal dotado de razão ou linguagem, é muito própria da classe a quem recai o trabalho de pensar, de organizar a produção, definir seus rumos e finalidades, e que aspira ao poder político. Assim, ao lado dessa compreensão de cunho ontológico, desenvolve-se na modernidade a ideia de que é o poder político, a esfera do Estado que determina as relações da sociedade civil.

Aqui também, com o viés da nova classe, Marx pode subverter essa causalidade, e considerar o Estado, o direito e toda a esfera política como consequências das reais relações de produção, da efetiva divisão do trabalho e do modo de vida prático, e não a sua causa. Desse modo, ele desenvolve uma vasta produção intelectual que mostra como as relações de poder que se dão no âmbito do Estado, do direito, e da política em geral são reflexos das relações efetivas de poder da sociedade. A ideia de que um Estado de direito se opõe à selvagem lei do mais forte é evidenciada em sua falácia: a política e o Estado são a oficialização precisamente dessa mesma lei. Assim, em lugar de um espaço neutro, que encarna a vontade geral e controla os interesses privados que combatem na sociedade civil, o Estado é, mesmo na forma republicana e chamada democrática, um instrumento da dominação de classes. O Estado serve, antes de tudo, à preservação das relações de poder estabelecidas e, em termos concretos, à garantia legal da propriedade privada. 

São as formas reais de produção e reprodução da vida que explicam as formas de consciência, e não o contrário; é a sociedade civil que explica o Estado, e não o contrário. São essas novas concepções que levaram Marx a dedicar-se a compreender justamente as formas práticas e reais de produção e reprodução da vida, e a partir delas as formas de poder, de consciência, do direito, de arte etc. que se desenvolvem a partir da prática. Volta-se, então, às relações econômicas de produção, à análise da forma capitalista, e a essa área dedica o seu mais conhecido estudo, O Capital. Nessa obra, se voltará às determinações concretas de nosso mundo, seus fundamentos históricos, suas leis, suas tendências e consequências para a vida humana; descobrirá o processo de alienação que é imanente ao modo capitalista de produção; bem como também subverterá as noções econômicas modernas da propriedade privada como forma natural de apropriação (extensão do próprio corpo), e do valor mercantil como forma natural do produto do trabalho humano. 

Mas, tudo isso se submete ao interesse básico, fundamental, ao motor da sua atividade intelectual, que é a superação revolucionária desse modo de produção, a fim de aniquilar a sociedade de classes, e sua forma própria de poder, o Estado.

Como pensador que funda uma visão de mundo própria à classe expropriada, ele dá nome ao conjunto das correntes políticas, de pensamento e de ação social que assumem essa perspectiva. Sua obra não se constitui como sistema fechado e acabado, de modo que ela é mobilizada para explicar múltiplos temas e as mais variadas conjunturas históricas. Rosa Luxemburgo disse que O Capital é “um manancial inesgotável de sugestões para levar adiante o trabalho intelectual, continuar pesquisando e lutando pela verdade.” Ora, esse manancial rendeu muito, tanto em termos teóricos como práticos, e em referência a cada conjuntura e finalidades dos autores e atores marxistas, as mais diferentes teorias sustentaram as mais diversas práticas. Assim, no interior do que se chama marxismo, para além da perspectiva de classe que o caracteriza, há muita divergência. Além disso, há distanciamentos maiores ou menores da obra de Marx que muitas vezes chegam a descaracterizá-lo. É o caso de parte do chamado marxismo ocidental, que se caracteriza por retirar a revolução do horizonte e com isso, separar novamente a teoria e a prática. Ou ainda, há visões que se valem das tentativas reais de revolução e identificam o pensamento marxista com as sociedades pós-revolucionárias, como a URSS. Neste caso, há um marxismo que se distancia de Marx na medida em que abandona a perspectiva de autogestão social, por meio de conselhos de produtores e produtoras, e defende a necessidade da centralização estatal, mantendo esta alienação política: a vida civil separada da instância de decisão.

Mas o marxismo desenvolveu de maneira muito profícua, a partir de Marx e Engels, por exemplo, os temas da hierarquia de gênero, mostrando como a família patriarcal, com suas funções econômicas privadas e domésticas, é necessária ao modo de produção capitalista; estuda os fundamentos do racismo a partir da dominação colonial, da escravidão moderna e da relação entre países dominantes e subalternos, do imperialismo, da divisão internacional do trabalho, do desenvolvimento desigual e combinado. E em outros campos, para além da política e da economia atuais, como a arte, a psicologia, a ecologia, a saúde e outros.

Para além das revoluções do século 20 (URSS, Vietnã, China, Cuba etc.), também há muitos movimentos sociais que reivindicam o marxismo, e cujo desenvolvimento teórico específico advém da prática. É o caso de movimentos sindicais e de organizações trabalhistas em geral, de diversos partidos políticos, ou, para citar de modo mais específico, dos antigos Black Panthers, de onde emerge o pensamento de Angela Davis, ou o atual movimento curdo, que produziu Abdullah Ôcalan. Enfim, como uma postura original em que o pensamento visa a prática e se constrói a partir da perspectiva original da classe trabalhadora, toda crítica teórica ou mobilização prática que se pretende radical de um modo ou de outro recorre a Marx e constitui o que chamamos de marxismo.

 

Serviço de Comunicação Social: Em linhas gerais, o que Marx aborda em cada um dos três volumes de O Capital?

Vera Cotrim: A principal obra de Marx tem por finalidade geral apresentar uma crítica à economia política moderna. Essa ciência foi desenvolvida pelos fundadores da economia política a partir da perspectiva do capital, isto é, dos interesses da burguesia como classe em ascensão. As teorias clássicas (especificamente as de Adam Smith e David Ricardo) foram capazes de elaborar uma compreensão sobre a produção capitalista, mas um entendimento limitado por seu interesse de classe, qual seja, o de afirmar este modo de vida como adequado à natureza humana e capaz de levar o conjunto da sociedade, ou da nação, à prosperidade. Marx procura responder às mesmas questões propostas pela economia moderna – de onde vem a riqueza, como ela se produz e é distribuída – mas a partir de uma perspectiva nova, que é a da classe trabalhadora. Com isso, ele não apenas aponta os limites das teorias clássicas – a começar pelo fato de que a produção capitalista não se identifica com a produção humana, mas que o capital é uma relação social histórica, específica e definida, e que por isso pode ser superada – como amplia em muito a compreensão deste modo de vida. Por exemplo, Marx explica a origem histórica deste modo de produção, as tendências imanentes ao desenvolvimento capitalista, as crises econômicas, cada vez mais amplas, como contradições necessárias e inescapáveis à natureza do capital.

Os três livros d’O Capital - Crítica da Economia Política perfazem um movimento que vai da apresentação de relações mais gerais para as mais imediatas da economia capitalista, entendida como produção material da vida mediada pela relação social do capital. Assim, a exposição começa com as relações fundamentais e que não são aparentes na vida social cotidiana para progressivamente alcançar a superfície deste modo de vida.

O Livro I – O processo de produção do capital expõe a relação social definitiva do modo de produção capitalista, que é a oposição entre capital e trabalho. Essa relação explica como o capital se produz, ou seja, como o conjunto do produto social se cria na forma de capital, confrontando os próprios produtores como sua não-propriedade, como sua negação. Marx começa considerando a relação mercantil. Uma sociedade que produz o conjunto de seus produtos como mercadoria é uma sociedade em que múltiplos proprietários privados criam espécies singulares de produtos em escala social, isto é, para outros. Essa forma social pressupõe a divisão do trabalho, de modo que cada produtor privado precisa dos produtos dos demais para viver. Assim, a produção mercantil também pressupõe a socialização da produção. Esta socialização dos produtos se dá pela troca, pelo mercado. Isso transforma os produtos humanos em valores-mercantis: igualam-se todas as diferentes coisas e serviços em valores, medidas quantitativas de trabalho ou esforço humano materializado, tornando secundárias suas qualidades múltiplas. O mercado iguala e transforma todos os produtos humanos em mero valor mercantil. Com isso, transforma também todos os indivíduos humanos em proprietários privados vendedores e compradores, relacionando-se por meio da relação contratual. Assim, o mercado também iguala os indivíduos: são todos livres trocadores dos valores-mercantis que possuem. Aquele que não tem nada a vender no mercado, também não pode comprar, e fica fora da socialização da produção social, podendo perecer. A relação de valor é pressuposta à relação capitalista, que é o que Marx busca explicar no primeiro livro. Em seguida, ele vai destrinchar o modo como o capital, magnitude de valor posta a se ampliar, irá realizar a façanha da valorização dentro de uma condição: vender e comprar todas as mercadorias, inclusive a força de trabalho, pelo que valem. Ele expõe, então, a exploração do trabalho ou mais-valor (diferença entre o valor do salário e o do produto que o trabalho cria) e desenvolve este tema considerando o desenvolvimento da tecnologia, da produtividade do trabalho (mais-valia absoluta e mais-valia) bem como, ao final, os pressupostos históricos da relação-capital: acúmulo de riqueza mercantil e colonial, expropriação dos produtores. Em suma, a partir da relação de valor, o livro I apresenta a produção de capital por meio da relação entre capital e trabalho. Aqui, o capital aparece como um único bloco de capital produtivo em oposição a uma única massa de trabalho produtivo. Daí seu caráter mais genérico ou abstrato, que esclarece a relação capitalista fundante: a oposição entre produtores e seus meios de produção.

O Livro II – O processo de circulação do capital aborda a realização do valor e as divisões do capital entre capitais produtivos e mercantis, em um primeiro momento, e, no interior do capital produtivo, entre aqueles que produzem os meios de produção (setor I) e aqueles que criam os meios de consumo (setor II). Quanto à primeira divisão, entre capitais produtivos e improdutivos, o foco é demonstrar a diferença entre produzir mercadorias e realizar o valor delas, isto é, transformá-lo em dinheiro, única forma em que o capital pode ser novamente investido. Entre produzir mercadorias e vendê-las há uma distância e Marx mostra que, de maneira geral, a capacidade de o capital produzir valores de uso é maior do que sua capacidade de realizar o valor que contém, reproduzindo assim o valor-capital inicial. Este ponto é muito importante, porque este é o primeiro fator que abre a possibilidade de crises de superprodução e mostra que produção de coisas e produção de capital são processos distintos. Ao abordar este tema, Marx apresenta as autonomizações das figuras do capital (capital produtivo, capital-mercadoria e capital-dinheiro), introduzindo o fato de que o capital só existe como multiplicidade de capitais e que sua forma específica requer trabalho assalariado que não cria valor, que é improdutivo e serve apenas às metamorfoses formais do valor. Quanto à segunda divisão, no interior do capital produtivo, em que Marx apresenta os famosos esquemas de reprodução, sua importância está em mostrar que, apesar do caráter privado característico do capital, os vários capitais constituem um todo interdependente, unificado pelo mercado, ou seja, são partes de uma divisão social da produção dependente do consumo, cuja autonomia é, senão ilusória, muito relativa. Com isso, Marx expõe as condições da reprodução ampliada do capital, que é sua finalidade imanente. Neste livro, os capitais já aparecem como múltiplos, e essa multiplicidade se caracteriza pelas autonomizações de suas funções parciais (capitais produtivos de meios de produção, de meios de consumo, capitais comerciais e capital-dinheiro autonomizado), mas suas relações ainda aparecem como meras relações mercantis, isto é, os capitais privados são compradores e vendedores uns dos outros. Como ainda não é pautada a relação capitalista por excelência, que é a concorrência, há ainda um considerável grau de abstração.

No Livro III – O processo global de reprodução do capital é abordada a concorrência entre capitais singulares, em suas diferentes funções automatizadas, com a finalidade de explicar as leis que regem a distribuição da mais-valia socialmente criada entre eles. Desde o Livro I, já estava claro que a substância de toda lucratividade é o mais-valor, trabalho não pago extorquido da classe trabalhadora. No livro II ficou claro que, entre a produção de mais-valia incorporada nas mercadorias e sua realização, é necessária a mediação social do mercado, que pode frustrá-la. Também já sabíamos que existem capitais que se valorizam sem produzir qualquer valor. Agora, Marx irá explicar essa mediação que se dá em um nível mais próximo da superfície das relações econômicas, as leis que regem a apropriação de parcelas da mais-valia social pelos diferentes capitais singulares. Primeiramente, como resultado das migrações de capital de um ramo a outro em busca da maior valorização possível, Marx expõe a formação da taxa geral de lucro, que determina que os capitais lucrem em proporção ao investimento, e não de acordo com o montante de mais-valor que de fato produzem singularmente. Isso vale também para os capitais comerciais que, embora não criem nenhum valor, realizam função necessária para a realização do conjunto do valor dos capitais produtivo a custo mais baixo, e assim se remuneram também pela taxa geral de lucro. Marx aborda então o capital a juro (função da figura autonomizada do capital-dinheiro) e o papel do crédito na reprodução capitalista: capitalizar a reserva monetária global. A remuneração do capital a juro não obedece a uma lei econômica tal qual a taxa geral de lucro, mas envolve, uma determinação no âmbito da política econômica, ou seja, do Estado. Este é um dos momentos em que se torna evidente que todo o sistema capitalista depende de uma organização política específica, em que o Estado funciona para garantir os títulos de propriedade privada de todos os tipos, sem o que a ordem colapsaria. Marx aborda ainda a remuneração da propriedade da terra, que a rigor não é um capital, na medida em que se trata de um valor de uso não-reprodutível, mas que funciona como tal ao autorizar uma remuneração advinda do monopólio, e cuja substância é também a mais-valia social.

Compreendemos, assim, as diferentes formas de valorização do capital – lucro do capital produtivo ou comercial, juro do capital-dinheiro (fundamento para a compreensão das novas formas dos títulos financeiros) e a renda da terra (cuja base no monopólio de um valor de uso necessário à produção explica formas recentes de valorização por patentes de conhecimento, processos e produtos , com as sementes da Monsanto, por exemplo). No terceiro livro, é desenvolvido também o tema da tendência histórica geral do capital a reduzir a taxa geral de lucro ao mesmo tempo em que amplia sua massa, sua quantidade absoluta, tendência que já estava indicada na seção sobre a mais-valia relativa no Livro I. Aqui, as crises como momento necessário da expansão capitalista, são também desvendadas como crises de superprodução de capital, expressão da contradição que está na natureza do capital: o impulso ao aumento da produtividade do trabalho social implica a redução das bases de reprodução do valor-capital. Com isso, Marx aponta para a necessidade do capital de abarcar todos os ramos da atividade humana e para a tendência à extrema concentração de riqueza e formação de imensos monopólios. Isto implica a pauperização relativa da classe trabalhadora (parcelas crescentes da riqueza nas mãos da classe capitalista) e mesmo da pauperização absoluta de parcelas desta classe, devido à crescente constituição de população excedente, que é aquela parcela de indivíduos que não conseguem vender nada no mercado, e portanto não participam da produção socializada.

No plano de redação de sua crítica à economia política, Marx projetava escrevê-la em seis livros, seguindo mais ou menos as divisões temáticas clássicas da economia política: capital, propriedade da terra, trabalho assalariado, Estado, comércio exterior, mercado mundial e crises. No decorrer da investigação, contudo, Marx se deu conta de que o capital, não com como coisa ou magnitude específica de valor, mas como relação social de produção, era a força organizadora do conjunto social, determinado não apenas o Estado e a política, mas o conjunto das demais formas de opressão, como o patriarcado moderno, a escravidão moderna e a hierarquia racial. A partir desta concepção original, ele planeja escrever seu trabalho como uma obra de arte, ou seja, um todo em que o começo só se explica no final. É sabido que Marx publicou apenas o primeiro livro d’O Capital, e os demais foram organizados e publicados postumamente por Engels, a partir de estudos mais ou menos desenvolvidos de Marx. O texto não é acabado, mas, ainda assim, ao final, quando vemos a lei do valor regendo conjunto do movimento por trás das leis econômicas aparentes, parece-me que ele conseguiu produzir uma teoria com esse caráter artístico.

 

Serviço de Comunicação Social: Qual o conceito de capital, de acordo com o filósofo?

Vera Cotrim: O conceito mais imediato de capital é de “valor que se valoriza”, ou seja, uma dada magnitude de valor incorporada em dinheiro empregada de modo tal que, ao final do processo, retorne ampliado a seu proprietário. Há diversas maneiras pelas quais isso pode ocorrer: pelo comércio, comprando mercadorias para revender, emprestando dinheiro a juro, comprando ações ou títulos financeiros, monopolizando a terra, patenteando algum valor de uso, investindo na produção industrial ou rural etc. O capital é anterior ao capitalismo.

Assim, no início da modernidade, com a expansão comercial europeia, por exemplo, era comum a valorização de dada fortuna em dinheiro por meio de trocas desiguais, ou seja, comprar barato em um mercado para vender caro em outro. Assim, a substância da valorização que fluía para o bolso do comerciante era a riqueza já existente, o que simplesmente empobrecia o produtor do outro lado. Tratava-se de uma transferência de riqueza, tornada capital comercial nas mãos do comerciante. Marx chama essas formas de capital de “antediluvianas”, caracterizando a produção capitalista como um dilúvio histórico. Porém, com a generalização da vida mercantil e o advento capitalismo propriamente dito, industrial, a valorização precisa se basear em valor novo, ou seja, é definitivo do modo capitalista de produção a constante e crescente criação de novas quantidades de valor. Isso amplia o conceito de capital para o de uma relação social. Trata-se do antagonismo entre o conjunto dos produtores e seu produto, que se contrapõe a eles na forma de capital. Há uma passagem no Livro III, em que Marx trata do capital portador de juro, forma acabada do fetichismo do capital - que parece criar dinheiro apenas por ser dinheiro, como a pereira produz peras - em que o conceito de capital como relação de antagonismo entre produtores e seus produtos fica clara. Ele diz que, na medida em que todo capital singular tem a possibilidade de ser aplicado a juro, ainda que ele seja aplicado em funções produtivas, parece que uma parte do lucro é criada pelo capital em si mesmo – sua capacidade intrínseca de se multiplicar – e outra parte do lucro como resultado da produção. De fato, todo dinheiro, a partir de uma certa quantidade, é capital em potencial, ou seja, pode produzir frutos. E por quê? Ora, todo capital singular detém a capacidade de criar frutos por si mesmo simplesmente porque o trabalho assalariado existe como forma geral do trabalho social (a presença de escravidão não contradiz isso, escravos modernos também criam mercadoria e mais-valia). Capital é, pois, a relação de alienação entre os produtores e os produtos que eles criam como valor-capital a eles opostos. O produto dominando o produtor, as próprias forças humanas de autodeterminação tornadas estranhas ao ser humano.

 

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de O Capital para compreendermos problemas atuais da sociedade?

Vera Cotrim: Marx é contemporâneo à formação da classe trabalhadora como classe separada da burguesia, ou seja, à cisão que ocorre no seio do "terceiro estado", aquela grande classe plebeia ou não-nobre, que realizou a revolução francesa e outras revoluções modernas, e que se compunha tanto pela parcela rica, comerciante, manufatureira, proprietária, banqueira, como pela parcela pobre, os trabalhadores. Com a vitória das revoluções modernas, a burguesia vai aos poucos se consolidando como classe dominante, destituindo o antigo regime, a hierarquia de sangue e os privilégios feudais. Ao mesmo tempo, o sistema político e econômico que se consolida a partir dessa ruptura começa a manifestar-se como inadequado e oposto aos interesses daquela parte pobre que contribuíra para as revoluções que haviam levado a burguesia ao poder. Opera-se uma cisão prática nas classes: a parcela não-proprietária se consolida como classe trabalhadora, cujos interesses são contrários e cuja própria vida é ameaçada pelo modo de produção capitalista e o estado de direito que são as formas próprias da dominação burguesa. 

Desde 1830, emergem revoltas e movimentos de trabalhadores que adquirem consciência dessa oposição de interesses, aprofundando-se em 1844 com a revolta dos tecelões silesianos e muito marcadamente a partir de 1848, com as lutas proletárias em toda a Europa que ficaram conhecidas como Primavera dos Povos. Sobre a derrota das lutas dos trabalhadores franceses em junho de 1848, Marx escreve no jornal Nova Gazeta Renana, que ele dirigiu durante cerca de um ano até ser fechado pela censura, que apesar da superioridade da força de repressão burguesa que acarretou o sufocamento em sangue das revoltas dos trabalhadores, a verdadeira derrotada foi a burguesia, porque essas lutas consolidaram a consciência da classe trabalhadora sobre a sua oposição aos interesses burgueses: “O triunfo momentâneo da força bruta for comprado com o aniquilamento de todas as mistificações e ilusões da revolução de fevereiro (que tinha ainda um caráter burguês - V. C.), com a decomposição de todo o velho partido republicano, com a cisão das nações francesas em duas nações, a nação dos proprietários e a nação dos trabalhadores” (NGR, nº29). 

Ora, hoje em dia, particularmente após o fracasso ou derrota das tentativas revolucionárias do século 20, essas ilusões voltaram a se tornar hegemônicas no campo da chamada esquerda mundial, quer dizer, o horizonte das esquerdas voltou a ser uma gestão humanizada do capitalismo, e o estado democrático, característico da conciliação de classe que teve lugar em alguns países centrais no período da guerra fria, o ponto máximo da transformação social. Ou seja, hoje em dia, as perspectivas de esquerda retrocederam a aquém de 1848. Neste sentido político, Marx é atual e está mesmo à frente de nosso tempo.

Além disso, as tendências do capitalismo indicadas por Marx n’O Capital se concretizaram. Até hoje, não há explicações sobre as crises econômicas que não recorram à natureza do capital exposta por Marx. A alternativa às explicações marxistas é a ideológica e pueril afirmação de que crises são “externalidades”, ou seja, não pertencem à natureza da relação-capital. Crises econômicas cada vez mais profundas, centralização obscena de capital e destruição de contingentes humanos e naturais mostram que a valorização do capital não estabelece qualquer limite para si mesma, nem quando a ameaça ao conjunto da vida no planeta se torna iminente. Até economistas liberais como Thomas Piketty, que escreveu O Capital do século XXI, reconhecem que voltamos a um nível de desigualdade de riqueza entre capital e trabalho que se assemelha ao das primeiras revoluções industriais do século 19. Ora, por que houve algumas décadas do século 20, posteriores às grandes guerras, em que essa desigualdade diminuiu nos países centrais do capital (e apenas neles)? Devido exatamente às lutas de classe e às ameaças revolucionárias que se tornaram reais após a revolução russa de 1917. Ou seja, ao espectro que continuava a rondar a Europa. Como abandono da perspectiva revolucionária, a classe trabalhadora vem perdendo conquistas e as esquerdas do mundo todo acumulam derrotas. Sem o espectro do comunismo, a hegemonia absoluta do modo de vida capitalista no mundo levou à barbárie neoliberal que vivemos hoje. Enquanto a relação capitalista estiver na base do nosso modo de vida, O Capital permanece atual. 

Vera Cotrim é doutora e mestre em História Econômica pela FFLCH, pela qual também se graduou em Filosofia. Desenvolveu pesquisa sobre o tema da produção capitalista da ciência, que envolve as questões do trabalho intelectual assalariado e da propriedade intelectual. Investiga hoje a crítica de Marx à economia política e à dialética hegeliana, buscando situar a obra de Marx na história da Filosofia. Investiga ainda o pensamento feminista e as teses sobre as questões de gênero e as questões raciais; além de aspectos da atual questão palestina, especialmente a relação entre apartheid social e patriarcado. As pesquisas que desenvolveu na pós-graduação estão disponíveis na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.