"Os Sertões", de Euclides da Cunha, é publicado pela primeira vez

Completando 120 anos de lançamento, livro faz um retrato da Guerra de Canudos e é visto como denúncia de uma idealização de civilização que se confronta com uma realidade desigual

Por
Pedro Fuini
Data de Publicação

Os Sertões, de Euclides da Cunha
De acordo com Carolina Correia dos Santos, Os sertões é considerada uma obra fundamental não apenas para a literatura, mas também para a cultura brasileira. (Arte: Pedro Fuini)

Em 1º de dezembro de 1902, ocorreu a primeira publicação de Os sertões, obra mais famosa do escritor e jornalista fluminense Euclides da Cunha. O livro, que acaba de completar 120 anos de lançamento, é reconhecido por fazer um retrato da Guerra de Canudos (1896-1897), conflito ocorrido no interior da Bahia. Dividido em três partes, “A terra”, “O homem" e "A luta”, Os sertões se dedica a falar do sertanejo, descrevendo e analisando seu modo de vida e condição social; as origens de seu terreno, o sertão brasileiro; e, finalmente, o conflito de Canudos. 

Carolina Correia dos Santos, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, entretanto, destaca que na Nota Preliminar, Cunha já deixa claro que o tema da obra ultrapassa o episódio de Canudos, que é algo periférico no livro. “Euclides diz expressamente que Os sertões tentará ‘esboçar’ aos futuros historiadores “os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil”, condenadas ao desaparecimento, ele afirma, por conta do movimento “natural” da história em direção à civilização.” Para isso, Santos explica que o escritor faz uso de uma linguagem científica (ou cientificista), que estimula a assimilação do sertanejo "com intuito de torná-lo familiar dentro de um discurso identificado com o poder, a ciência e a história da formação nacional." 

Os sertões é considerada uma obra fundamental não apenas para a literatura, mas também para a cultura brasileira. De acordo com a pesquisadora, os modos como o livro é lembrado – por um lado, uma denúncia do crime cometido pelo exército contra sertanejos e, por outro, a denúncia de uma vontade idealizada de civilização em confronto com uma brutal realidade de desigualdade social – nos levam a compreender a obra ao mesmo tempo como diagnóstico do momento histórico em que foi escrita e um prognóstico do que virá, “estabelecendo, assim, um vínculo com a verdade raramente contestado”.

Em sua tese de doutorado, que se desdobrou no livro Na ponta da língua: literatura, política e violência em Os sertões, Native Son e Cidade de Deus (EdUERJ, 2021), Santos buscou tensionar pontos que considera serem silenciados dentro de uma uma obra importante, mas cheia de contradições. “O que dizer sobre os argumentos rácicos de Euclides? Será que podemos sentir os ecos deles também? Como encarar o silenciamento dos sertanejos, a afirmação de que desapareceriam? O que o argumento evolucionista e pouco problematizado de Euclides pode nos dizer sobre o modo como pensamos o Brasil hoje? Essas são algumas das questões que trato de afrontar através, sobretudo, da ideia de formação da nação que, ao meu ver, subjaz a obra de Euclides”.

Leia a seguir a entrevista completa de Carolina Correia dos Santos, atualmente professora de teoria da literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

 

Serviço de Comunicação Social: Qual o tema retratado em Os sertões?

Carolina Correia dos Santos: Na “Nota Preliminar” ao texto principal de Os sertões, Euclides da Cunha diz que o tema do livro ultrapassa a Guerra de Canudos. Se Os sertões é, principalmente, lembrado como um testemunho da guerra, então, é interessante que logo nas primeiras linhas do livro, antes mesmo do texto propriamente dito iniciar, Euclides alerte seus leitores de que a Campanha de Canudos se tornou algo, de certo modo, periférico no livro. Tendo sido publicado cerca de cinco anos após o final do conflito, Euclides diz que o tema da guerra perde sua atualidade e que seu livro tratará de algo mais abrangente, que se relaciona ao passado e ao futuro do país.

Euclides diz expressamente que Os sertões tentará “esboçar” aos futuros historiadores “os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil”, condenadas ao desaparecimento, ele afirma, por conta do movimento “natural” da história em direção à civilização. Ou seja, Os sertões se dedicará a uma explicação da existência e da extinção do sertanejo, engendrando, para isso, ideias sobre isolamento geográfico da região e, seu correlato, o apartamento social do homem do interior. Neste sentido, Os sertões busca descrever o terreno: o sertão, o deserto brasileiro e investigar suas origens. Faz a mesma coisa com o sertanejo: descrição e análise. Para, então, se dedicar à Campanha de Canudos. Esse percurso dá os nomes às três partes da obra: “A terra”, “O homem" e "A luta”. 

 

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Cunha na obra?

Carolina Correia dos Santos: Para conseguir este objetivo, Euclides não pode abrir mão de uma linguagem científica (ou cientificista), que possa, assim, dar vazão à sua ambição totalizante. Portanto, essa linguagem tentará dominar, classificar e hierarquizar. É, efetivamente, uma linguagem que estimula a assimilação do sertanejo (pela cultura civilizada) e que permite sua destruição material. Podemos afirmar que, engendrando os conhecimentos sobre a terra – o sertão nordestino –, o homem – o sertanejo em última instância, mas os tipos brasileiros também – e a luta, como se os três elementos fossem lógica e cronologicamente relacionados, Os sertões corroboraram a formação de um conhecimento acerca da nação que abarcaria o outro com intuito de torná-lo familiar dentro de um discurso identificado com o poder, a ciência e a história da formação nacional.

Contudo, Os sertões não é uma obra homogênea e se a história (a ciência), de certo modo, guia a escrita do texto, isso não acontece em todo o texto. Isto é, em uma parte considerável da obra o que podemos também afirmar é que a linguagem da ordem, da lógica e da razão é capturada pelo outro. São momentos, digamos, de um tipo de delírio, de misticismo, características próprias dos sertanejos (e de Antonio Conselheiro, sobretudo). Trechos nos quais o que foi dito é contradito, onde as explicações científicas são erráticas e, no limite, completamente equivocadas.

 

Serviço de Comunicação Social: Por que Os sertões é considerada uma obra tão importante para a Literatura Brasileira?

Carolina Correia dos Santos: Acredito que Os sertões seja considerada uma obra fundamental para a cultura brasileira, e não estritamente para a literatura brasileira. Isso porque ela é vinculada a uma ideia de revelação do Brasil, da verdade essencial sobre o país. Contudo, como convencionou-se pensar na literatura brasileira como uma espécie de discurso de interpretação do Brasil, da sua história e da sua cultura, é verdade que os motivos aqui se misturam e falar da importância para uma quase equivale a falar da importância para a outra.

É difícil comentar resumidamente sobre a importância e a função que a obra de Euclides tem desde sua publicação e ao longo de mais de um século. Acho, no entanto, que o que disse anteriormente, a respeito da linguagem e do tema, já demonstra um pouco do significado da obra para a literatura e a cultura brasileiras.

Os sertões, como vejo, constitui uma espécie de matriz do pensamento que se desenvolverá no Brasil sobre o Brasil ao longo do século 20. Para compreender isso, tenhamos em conta o modo como a obra de Euclides é frequentemente lembrada. Ela seria a denúncia do crime cometido pelo exército, por um lado, e, por outro, a denúncia das contradições brasileiras: da vontade idealizada (e somente idealizada) de civilização, de uma parte, e da brutal realidade de desigualdade, de outra. Esta fórmula nos leva a imaginar que o texto de Euclides é compreendido como diagnóstico do momento (o final do século 19) mas também como um prognóstico do que virá, estabelecendo, assim, um vínculo com a verdade raramente contestado. Os ecos das afirmações e das ideias de Euclides são, portanto, facilmente encontrados em textos que se tornaram fundamentais para nós. Pensemos na questão da “cópia”, por exemplo. Em Os sertões, lemos (me perdoe pela longa citação): “Iludidos por uma civilização de empréstimos; respingando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa.” Como ler isso e não nos remetermos imediatamente ao início de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e ao também início de “Nacional por subtração”, de Roberto Schwarz? Com esses dois exemplares de pensadores – de não pouco peso – cobrimos praticamente o século 20. Temos um exemplar da década de 1930 e outro da década de 1980. Não estou dizendo que esses três autores tenham dito a mesma coisa. Mas, mais especificamente, gostaria de salientar que os três supostamente tiveram o mesmo estímulo, que teriam observado uma realidade que perdurou. Que eles tenham partido de uma mesma inquietação ou aparentemente identificado o mesmo princípio (um país que imita, que copia, que não é original) é algo que, neste ponto, se torna uma característica intrínseca do Brasil. O que quero sugerir é que essa convergência denota, de fato, um mesmo modo de pensar o Brasil através dos tempos: como lugar da falha, da contradição, da falência, onde as aparências não correspondem à essência, onde se diz algo e se faz outro. E isso, esse determinado olhar e modo de contar a história, teria sido inaugurado pelo livro de Euclides e se tornado a realidade ou a verdade sobre o Brasil.

Essa tendência à cópia, digamos, e o consequente anseio por autonomia também são verificáveis na literatura ou na historiografia literária brasileira. Neste sentido, aqueles escritores que conseguiram, alega-se, superar a contradição entre ideal e realidade são aqueles que executaram bem a síntese entre uma inexorável exigência de cópia da forma (europeia, universal) da literatura e um conteúdo original. Esses seriam os escritores das grandes e melhores obras literárias brasileiras, isto é, aquelas que revelam a verdade sobre o Brasil por meio de uma forma estética refinada.

 

Serviço de Comunicação Social: Por fim, você poderia nos contar a respeito da pesquisa que desenvolveu em seu doutorado?

Carolina Correia dos Santos: Minha pesquisa, claro, tem a ver com tudo o que afirmei anteriormente. Mas ela visa tensionar esses pontos que, como vejo, são continuamente silenciados. Penso Os sertões como uma obra cheia de contradições, que comporta objetivos problemáticos e cujos resultados devem ser pensados no interior do texto, assim como a tradição que ele parece fundar. Caio Prado Júnior dizia que com Os sertões, o pensamento brasileiro começou a “adquirir maioridade”. E eu acabo de sugerir que lidamos, ao longo do século passado, mas ainda hoje, com um modo de pensar o Brasil que parece ter surgido com Os sertões. Se a importância, portanto, da obra é evidente, o que podemos dizer, o que devemos pensar sobre aquilo que ela também diz mas que tem sido silenciado? Ou seja, o que dizer sobre os argumentos rácicos de Euclides? Será que podemos sentir os ecos deles também? Como encarar o silenciamento dos sertanejos, a afirmação de que desapareceriam? O que o argumento evolucionista e pouco problematizado de Euclides pode nos dizer sobre o modo como pensamos o Brasil hoje? Essas são algumas das questões que trato de afrontar através, sobretudo, da ideia de formação da nação que, ao meu ver, subjaz a obra de Euclides. Então, de certa forma, estou pensando na relação que a obra estabelece com a ideia de que somos uma nação e como essa relação se vincula à literatura e a cultura de forma geral.

Carolina Correia dos Santos é mestre e doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH e professora de teoria da literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Foi pesquisadora Pós Doutorado Nota 10 - Faperj na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora visitante na Universidade de Columbia em Nova York. Atua, principalmente, nos seguintes âmbitos: literatura comparada, teoria literária, teoria pós-colonial e filosofia feminista. É autora de Na ponta da língua: literatura, política e violência em Os sertões, Native Son e Cidade de Deus (EdUERJ, 2021), desenvolvimento da tese de doutorado defendida na FFLCH, e Jaguaretama: o mundo imperceptível de Meu tio o Iauaretê (7Letras, 2022).