Nascimento de Lygia Fagundes Telles

Escritora brasileira, Lygia Fagundes Telles, destacou-se na literatura nacional com obras centradas em contos

Por
Gabriela César
Data de Publicação

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"A criação de Lygia elabora essa experiência da vida social por meio da forma fragmentária, terminada frequentemente em impasse, no recalcamento dos conflitos, que emergem no cotidiano, a partir das relações", afirma Claudia Ayumi Enabe. (Arte por: Gabriela César / Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

Conhecida como “dama da literatura brasileira”, Lygia Fagundes Telles marcou a história nacional por meio de suas obras. Escritora de Ciranda de pedra (1954) e As Meninas (1973), Lygia demonstrou sua subjetividade ao aderir às formas breves e  tradicionais de narrativa em um período marcado por inovações.

Não há precisão quanto à data de seu nascimento, mas acredita-se que a escritora tenha nascido em 1918 ou 1923, e vivido o período de maior produção literária do país: o modernismo. De acordo com Claudia Ayumi Enabe, doutoranda em Literatura Brasileira pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP: “A divisão do modernismo em fases acaba por criar aparência de uniformidade entre um grupo muito heterogêneo de obras e autores, além de um sequenciamento cronológico que não reflete a temporalidade das criações literárias.”

O período literário de Lygia, conforme a pesquisadora relatou, é complexo e marcado por singularidades. Assim, a escritora foi na contramão da preferência nacional dos autores modernistas pelos romances e dedicou-se mais à uma literatura centrada nos contos. Entretanto, ainda que tenha escrito em maior volume narrativas tradicionais, ela também incorporou elementos “modernistas” em seus textos, como fluxos de consciência e pontos de vista alternantes.

A obra mais famosa de Lygia, As Meninas, marca a valorização das perspectivas femininas dentro das narrativas. Até o momento de publicação do livro, grande parte da literatura publicada era feita por meio de um olhar masculino, inclusive para as personagens femininas das ficções. Lygia quebra esse estereótipo ao dar enfoque à três mulheres vivenciando a ditadura militar brasileira. Essa posição de enfrentamento, que é um papel costumeiramente masculino, é atribuída a elas, o que reflete a mudança de pontos de vista trazida pela autora. 

Confira a entrevista completa com Claudia Ayumi Enabe concedida ao Serviço de Comunicação Social da FFLCH:

Serviço de Comunicação Social: Na sua opinião, quem foi Lygia Fagundes Telles e qual a importância de suas obras para a literatura brasileira?

Claudia Ayumi Enabe: Lygia Fagundes Telles foi uma grande ficcionista brasileira. Nascida em 1918 ou em 1923, há polêmicas em torno do ano exato de seu nascimento, e falecida em 2022, Lygia viveu os anos mais intensos de produção literária no Brasil. Não apenas como testemunha, ponto de vista incorporado em seus livros de memória, mas também sendo um dos nomes centrais dessa prosa moderna que se inaugura, por exemplo, com as vertentes do chamado romance de 30. No entanto, diferentemente dessa geração, a singularidade da obra de Lygia Fagundes Telles está no domínio das formas breves, sobretudo, o conto. 

Essa preferência pela intriga concentrada a posiciona na contramão de uma preferência nacional pelo romance, que Antonio Candido trata como instrumento de “exploração e descoberta” da realidade brasileira. A criação de Lygia elabora essa experiência da vida social por meio da forma fragmentária, terminada frequentemente em impasse, no recalcamento dos conflitos, que emergem no cotidiano, a partir das relações. Tanto nos romances quanto nos contos, há um trabalho profundo com a ficção, a qual está constantemente a desafiar o real a se desvelar em suas fragilidades. Esses movimentos podem ser vislumbrados no que a professora Walnice Nogueira Galvão denominou, no posfácio à reunião Os contos (2019, Companhia das Letras), uma descoberta lygiana: a “imagem pregnante”. Estes são geralmente objetos que possuem o potencial de desestruturar as integridades, as identidades ou mesmo de puxar um fio de memória em que se revelam as contradições do sujeito. Algumas dessas figuras mais famosas são os anões de jardim, que povoam alguns dos textos mais fortes da produção da autora, como o romance Ciranda de pedra (1954) e O anão de jardim, conto de Antes do baile verde (1970). Para Lygia, o par “Invenção e Memória”, título de um de seus livros mais ambivalentes (2009, Companhia das Letras), revela-se indissolúvel: a memória necessita de invenção, e vice-versa. Lygia nunca negou que “inventava” muito do que se podia chamar de memória. Nesse momento, no qual a autoficção se destaca nas grandes premiações literárias e na mídia dedicada à literatura, um dos legados de Lygia, sem dúvidas, é continuar provando que a ficção está sempre em jogo na criação literária, mesmo quando o escritor a denega.

Serviço de Comunicação Social: Lygia Fagundes Telles, conhecida como "a dama da literatura brasileira", fez parte da terceira geração modernista. Quais são as características de suas obras que conversam com sua geração literária e quais diferenciam-se dela?

Claudia Ayumi Enabe: A divisão do modernismo em fases acaba por criar aparência de uniformidade entre um grupo muito heterogêneo de obras e autores, além de um sequenciamento cronológico que não reflete a temporalidade das criações literárias. Claro que existem tendências mais fortes em certo período, como o do romance neorrealista na década de 1930, ou a poesia de inspiração vanguardista, a partir da Semana de 1922. Contudo, denominar tanto os romancistas de 30 quanto os poetas de 22 de “modernistas” acaba por ser impreciso. E esse problema se adensa ao contemplar a obra de Lygia Fagundes Telles, por sua singularidade e, simultaneamente, por uma procura de aproximação com outras criações, como a de Clarice Lispector ou mesmo de João Guimarães Rosa

Conforme mencionado, Lygia se destaca por sua produção de contos, por seu talento para as intrigas curtas, um atributo peculiar, e que talvez não tenha recebido o devido reconhecimento, frente a grandes épicos como Grande sertão: veredas (1956) ou a um romance mais disruptivo como A paixão segundo G.H. (1964). Nos livros de Lygia, e até mesmo em suas entrevistas, está constantemente destacada sua experiência de leitora, tanto que a escritora chega a recriar em seu próprio estilo enredos provenientes de outros autores, com preferência a Edgar Allan Poe, que pode ser considerado um personagem fundante do conto moderno, e a Machado de Assis, o nome mais importante da literatura nacional e, também, um grande contista. 

Lygia chegou a adaptar Dom Casmurro, junto de Paulo Emílio Salles Gomes, seu segundo marido, para o cinema, em um roteiro que se intitulou Capitu (Cosac&Naify, 2008). Portanto, diferentemente de contemporâneos como Rosa e Clarice, Lygia experimentou um pouco menos com a língua, e aderiu a formas mais tradicionais de narrativa, sem tantos jogos de linguagem e experimentos de desintegração desta, mais dedicada à formação da trama e do acontecimento. Ainda assim, pode-se citar algumas incursões lygianas um pouco mais próximas de uma prosa um tanto mais experimental, em uma incorporação do que talvez se chamasse de algumas características mais “modernistas”, como os fluxos de consciência e os pontos de vista alternantes do romance As meninas (1973). 

Serviço de Comunicação Social: As Meninas, uma das obras mais famosas da autora, aborda a trama sob uma perspectiva feminina. De que modo Lygia retrata essa visão e qual a relevância dessa abordagem para a sociedade brasileira da época e da atualidade?

Claudia Ayumi Enabe: Existe ainda uma desigualdade na valorização da perspectiva das mulheres na ficção brasileira. Em certos romances, há uma construção do feminino por um olhar masculino, de modo a se cair com certa facilidade na idealização ou no estereótipo. Esse não é o caso, por exemplo, das personagens femininas de Machado de Assis ou João Guimarães Rosa, os quais demonstram que mesmo criadores homens podem inventar com profundidade uma diversidade de sujeitos. O problema é o da alteridade, de o autor ou autora conseguir encontrar uma forma digna e condizente de colocar o outro em cena. 

No romance de 1978, Lygia Fagundes Telles posiciona três jovens mulheres no centro de uma intriga atravessada por um dos períodos mais violentos da história brasileira. Esse lugar do conflito, ou mesmo do enfrentamento, é legada recorrentemente a personagens masculinos. E, de fato, as protagonistas do romance se veem nessa posição tipicamente atribuída às mulheres por vezes. Entretanto, esses papéis não são aceitos nem ocupados temporariamente sem um grau de ambiguidade, já que, na maior parte do tempo, os homens estão ausentes do romance, e as meninas, que intitulam o livro, precisam tomar a ação. Esse é o caso, por exemplo, da Lia, chamada Lião (apelido que traz certa androginia ao ser pronunciado pela leitura corrente de leão), cujo companheiro está encarcerado pela ditadura. Esse romance coloca a mulher no interior ainda de uma sociedade profundamente patriarcal, como protagonista de um momento decisivo da história do país. Acredito que são poucas as obras literárias que, ao mesmo tempo, consigam representar as estruturas regentes à vida social, sem ilusões, e inserir sujeitos considerados “segundos”, no sentido de segundo sexo para Simone de Beauvoir, no coração do acontecimento histórico. Para mim, ler As meninas é um aprendizado sobre a representação.

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Claudia Ayumi Enabe é doutoranda em Literatura Brasileira pela FFLCH USP. Em seu mestrado,  defendido no Programa de Pós-Graduação de Linguística da mesma instituição, estudou o amor como estrutura discursiva na contística de Lygia Fagundes Telles. É formada em Letras, com habilitação em Linguística e Português pela FFLCH USP.