Publicação de “Crime e Castigo”

Obra de Dostoiévski é best-seller mundial da literatura russa

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
Data de Publicação

“A obra de Dostoiévski foi e tem sido amplamente explorada em todo tipo de adaptações, desde encenações teatrais até histórias em quadrinhos e cinema”, segundo Ekaterina Vólkova Américo e João Paulo de Oliveira Brito. (Arte: Gabriela Ferrari Toquetti)

Fiódor Dostoiévski, um dos escritores mais conhecidos mundialmente, publicou Crime e Castigo em 1866. A obra tem como protagonista o estudante Rodión Raskólnikov, que vive na miséria em São Petersburgo. Atormentado pela pobreza e por sua insignificância no mundo, decide fazer algo para se distanciar das pessoas comuns e assassina uma velha agiota.

O romance e seu protagonista se baseiam na ideia de que existem, no mundo, pessoas ordinárias e pessoas extraordinárias. Os seres humanos extraordinários, como Napoleão Bonaparte, buscam a glória e deixam sua marca na história. Raskólnikov queria provar-se extraordinário – eis a motivação de seu crime. Já o seu castigo é a angústia moral que tomou conta dele depois de cometer o assassinato.

As temáticas de Crime e Castigo estão intimamente ligadas à visão de mundo de Dostoiévski, que, além de prisioneiro político, foi cristão ortodoxo. Ele criticava a frieza dos intelectuais russos e seu afastamento dos valores cristãos tradicionais. O protagonista da obra serve justamente como uma crítica à sociedade da época: Raskólnikov é, ao mesmo tempo, uma vítima dos pensamentos anticristãos e da miséria, que leva os pobres à sarjeta ou ao crime.

Crime e Castigo é um clássico por dois motivos. Primeiro porque Dostoiévski captou incrivelmente bem o espírito de seu tempo: um espírito carregado de ‘morte de Deus’ e do que o autor percebia como um otimismo cego e vazio da sociedade moderna em relação ao futuro. O segundo motivo decorre da abordagem talentosa e certeira desse espírito do tempo. Ao tratar com profundidade dos problemas concernentes à modernidade, Dostoiévski falou ao sempre presente impulso do ser humano na busca por tomar as rédeas do próprio destino, importando ao autor a maneira como essa busca se dava em seu século. A perpetuidade desse impulso no homem torna a obra atemporal e, em consequência, um clássico”, de acordo com Ekaterina Vólkova Américo, doutora em Literatura e Cultura Russa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e João Paulo de Oliveira Brito, mestre em Estudos Literários. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Em linhas gerais, qual é a temática central abordada por Crime e Castigo? E por que a obra tem esse título?

Ekaterina Vólkova Américo e João Paulo de Oliveira Brito: Crime e Castigo, publicado pela primeira vez em 1866, na revista Русский вестник (Mensageiro Russo), junto com Guerra e Paz, de Liev Tolstói, aborda o desenrolar da ideia elaborada e defendida pelo protagonista, o solitário estudante Rodión Raskólnikov, de que há dois tipos de seres humanos: os extraordinários e os ordinários. Segundo Raskólnikov, os primeiros são excepcionais, raros e historicamente incontornáveis: indivíduos de inteligência superior que buscam somente a glória. Napoleão Bonaparte é um exemplo desse tipo. Os ordinários, por sua vez, são o grosso da população mundial, medíocres sem pensamento próprio ou força de vontade elevada e que, por isso, deveriam servir apenas como ponte aos propósitos dos extraordinários.

Raskólnikov, que vive na penúria, tendo de contar seus escassos rublos e dormir em um quarto minúsculo em uma lúgubre São Petersburgo dostoievskiana, se pretende um extraordinário. Ao mesmo tempo, é fustigado pela cobrança de uma velha usurária. Ele a odeia. E a odeia não só pelo o que ela lhe causa, mas pelo tipo de indivíduo que ela representa: um “piolho” segundo o próprio Raskólnikov e, portanto, uma ordinária. Ele pensa que se matar esse “piolho”, não só eliminaria do mundo um mal, mas provaria a sua grandeza, tomaria em suas mãos o poder da vida e da morte e se equivaleria a um Napoleão. Aliás, calcula Raskólnikov, a História elevou o imperador francês à condição de herói, não importando o mar de corpos aliados e inimigos que compuseram os cenários por onde o líder passava. Então o jovem usa de toda a sua razão e inteligência para criar e executar o plano de assassinar a usurária e provar-se extraordinário. O livro continua nesta toada, mostrando-nos um Raskólnikov febril, assolado por pensamentos obscuros após ter cometido o crime e acossado pelo astuto investigador Porfiri Petróvitch.

Para finalizar o quadro, o estudante se quer racional ao nível da frieza calculista, mas erra pelas ruas da cidade movido por uma profunda compaixão pelos que sofrem, ajudando-os no impulso do momento mesmo em detrimento de si e se culpando logo depois por tais “deslizes”.

Raskólnikov tem vários antepassados literários como, por exemplo, as personagens de Byron, Julien Sorel (protagonista de O Vermelho e o Negro, de Stendhal), Fausto, Hamlet e, na literatura russa, Hermann de Aleksandr Púchkin (novela A Dama de Espadas). São personagens sofredoras e atormentadas que de uma ou de outra forma se envolvem nos crimes.

Esses são os ingredientes que nos ajudam a entender o título Crime e Castigo. Uma das interpretações possíveis da palavra “crime” é o fato de Raskólnikov não só premeditar um assassinato e cometê-lo, mas também o crime de minguar sua própria humanidade ao desumanizar outros seres humanos, dividindo-os em valor. Já “castigo” teria a ver principalmente com as tormentas morais e não com a futura prisão do protagonista; aliás, Dostoiévski nos mostra em Escritos da Casa Morta que a prisão e seus castigos dificilmente corrigem uma pessoa, mas, pelo contrário, deixam sequelas psicológicas graves.

Agora, é preciso expor um pouco da posição do próprio autor sobre o tema de Crime e Castigo. Dostoiévski foi um ex-prisioneiro político e homem público. Principalmente, foi um cristão ortodoxo fervoroso. Exasperava-o o fato de que boa parte dos intelectuais da Rússia do século 19 se afastasse cada vez mais dos valores cristãos e das tradições do povo russo em favor de um pensamento econômico, filosófico e social à moda das potências europeias. Países como Inglaterra, França e Alemanha haviam elevado o Estado, o Progresso e a Ciência à condição de deuses. (À propósito, em boa parte em consequência desses “novos deuses”, naquele século seria anunciada a “morte de Deus” pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche). Dostoiévski considerava que o cálculo utilitário e a razão fria advindas deste esquema empesteavam uma boa parcela dos intelectuais e da juventude letrada da Rússia. Raskólnikov respirava esse ar e tomava parte desse mundo acriticamente.

Raskólnikov é vítima não só desse pensamento – essencialmente anticristão aos olhos de Dostoiévski –, mas também pela miséria e desigualdade de sua própria sociedade que legava aos mais pobres a sarjeta, a fome e a prostituição. Não à toa, a maior companhia de Raskólnikov – e por quem ele nutre uma compaixão desmedida – é Sônia, uma moça levada pelo desespero a se prostituir para alimentar os irmãos caçulas.

Portanto, se no mundo de Crime e Castigo preponderam o cálculo econômico e a razão utilitária entre os dirigentes e os letrados, a compaixão pelos sofredores e dos sofredores – de todos aqueles que seriam tomados por “ordinários” –, desponta como esperança contra desumanização e possibilidade de redenção para Raskólnikov.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Dostoiévski na obra?

Ekaterina Vólkova Américo e João Paulo de Oliveira Brito: Dostoiévski, assim como toda a literatura russa, costuma ser visto como um escritor muito sério e até mesmo sombrio. Talvez o primeiro a destacar seu lado cômico e carnavalesco foi o filósofo, crítico literário e linguista Mikhail Bakhtin (1895-1975), autor dos conceitos como gêneros discursivos, cronotopo, polifonia e carnavalização. Vale lembrar que o fundador da eslavística brasileira e tradutor Boris Schnaiderman (1917-2016) publicou, em 1983, o livro Turbilhão e Semente: Ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin, em que apresentou Bakhtin, sua obra e biografia, além de trazer uma análise dos seus principais conceitos sempre em diálogo com o legado dostoievskiano.

No livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1965), Bakhtin descreve a cultura popular do riso que se opõe à cultura e ao poder oficiais, visando a mudança dos poderes e verdades e, no limite, a mudança da ordem universal. No ato do riso carnavalesco, combinam-se a morte e o renascimento, a negação e a afirmação. Na literatura, a carnavalização ocorre por meio da paródia, pela combinação do sério e do cômico, pela presença de diferentes gêneros e estilos. A eliminação da hierarquia social, típica das festividades carnavalescas, penetra nos romances de Dostoiévski, abolindo a onisciência monológica do autor-narrador e dando voz diretamente às personagens: à gente pobre, aos humilhados e ofendidos. As vozes, os gritos da praça pública – cada um com sua própria verdade – literalmente invadem a obra dostoievskiana, definida por Bakhtin como polifônica.

No livro Problemas da obra de Dostoiévski (1929), republicado com alterações consideráveis sob o título Problemas da poética de Dostoiévski (1963), Bakhtin afirma que o escritor russo teria revolucionado o gênero romanesco ao inventar uma nova forma: o romance polifônico.

Polifonia é um conceito complexo que engloba a noção da pluralidade de vozes em uma narrativa: trata-se de personagens que não necessariamente compartilham das mesmas opiniões e ideais do autor, sendo, por assim dizer, independentes, inclusive no modo de se expressarem. Isto é, as particularidades biográficas e psicológicas de cada uma delas se expressam também no nível linguístico e estilístico. Segundo Bakhtin, toda a prosa madura de Dostoiévski é polifônica: em seus romances, ocorre um intenso diálogo não apenas entre as personagens principais, mas também entre suas consciências. Observamos o confronto dessas consciências, visões de mundo e ética nos longos diálogos que as personagens travam entre si e consigo mesmo. De modo geral, o diálogo é a força motriz da prosa dostoievskiana.

Como lembra Bakhtin, a principal ação de um carnaval é a coroação e o destronamento posterior do rei carnavalesco que evidencia a alegre relatividade de qualquer regime, poder ou posição hierárquica. Dostoiévski parodia as personagens criando seus duplos destronantes. De fato, quase todos os seus protagonistas possuem duplos. Com Raskólnikov não é diferente: além do já mencionado investigador Porfiri Petróvitch, há também Svidrigáilov, um lascivo suicida, frio e calculista, e Marmeládov, pai de Sônia, um alcoólatra que perdeu toda a sua dignidade para o vício e para a fraqueza moral. Em cada um deles o protagonista morre para renascer e para renovar-se.

É curioso observar ainda que todos os acontecimentos ocorrem no limiar, por exemplo entre o quarto-cubículo de Raskólnikov e a cidade de São Petersburgo. Não por acaso, como apontou o semioticista Vladímir Toporov no ensaio Sobre a estrutura do romance de Dostoiévski em relação aos esquemas mitológicos do pensamento arcaico, em Crime e Castigo Dostoiévski repete a palavra “de repente” 560 vezes, destacando assim o estado limítrofe – entre a sanidade e a loucura, entre a vida e a morte – que também é típico do universo carnavalesco. Ele também se manifesta na linguagem do romance.

O estilo peculiar da escrita dostoievskiana é marcado por descontinuidades, omissões, repetições, incongruências, reticências, evasivas e ressalvas. Além disso, a fala de cada uma das personagens possui seu próprio estilo. Portanto, a totalidade de Crime e Castigo é essencialmente heterogênea, composta de múltiplas vozes, estilos, pontos de vista e verdades. Todas essas características não foram muito respeitadas nas primeiras traduções da obra dostoievskiana, principalmente nas francesas, o que resultou no amaneiramento do estilo polifônico nas primeiras traduções do romance (indiretas) que passaram a circular no Brasil na primeira metade do século 20. Houve, inclusive, toda uma discussão a respeito do estilo de Dostoiévski, que segundo alguns críticos, escreveu às pressas (uma vez que vivia endividado) e, portanto, mal. Só mais tarde chegou-se à conclusão de que as particularidades do seu estilo eram parte do projeto criativo do escritor. Portanto, nas traduções diretas mais recentes (como as de Paulo Bezerra e Rubens Figueiredo) esses traços estilísticos da escrita dostoievskiana foram cuidadosamente preservados.

Além do romance polifônico, o gênero de Crime e Castigo também pode ser definido como romance de aventura, ou como novela policial às avessas, pois conhecemos o assassino desde o início, o acompanhamos com interesse e, aos poucos – por mais incrível que pareça – passamos a simpatizar com ele. O foco, portanto, não está na busca pelo assassino nem no desvendar do crime, mas nas tormentas ético-morais que tomam conta de Raskólnikov após o assassinato.

Serviço de Comunicação Social: Qual é a importância do livro e de seu autor para a literatura russa e para a literatura mundial? Por que Crime e Castigo tornou-se um clássico?

Ekaterina Vólkova Américo e João Paulo de Oliveira Brito: Dostoiévski é inegavelmente um dos escritores mais conhecidos no mundo e, sem dúvida, o russo mais lido no Brasil. Crime e Castigo, junto com Anna Kariênina e Guerra e Paz de Liev Tolstói, concorrem ao título de best-seller mundial da literatura russa. A influência de Dostoiévski sobre toda a literatura posterior foi impressionante. O romance começou a ser traduzido para outros idiomas já no final do século 19. Em seguida, surgiram os assim chamados romances-satélites que desenvolviam temas sugeridos por Dostoiévski.

Entre os escritores estrangeiros diretamente impactados pela sua obra estão André Gide, Virginia Woolf, D. H. Lawrence, Albert Camus, Sartre, Hermann Hesse, Franz Kafka, Gustav Meyrink, Stefan Zweig, Robert Musil, Iris Murdoch, John Coetzee. No Brasil, percebemos a influência do romancista russo nas obras dos escritores como, entre outros, Lima Barreto, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector e Graciliano Ramos. Além disso, Ariano Suassuna e Rachel de Queiroz louvavam Dostoiévski como um dos maiores escritores de todos os tempos.

A obra de Dostoiévski foi e tem sido amplamente explorada em todo tipo de adaptações, desde encenações teatrais até histórias em quadrinhos e cinema. Nesses casos, trata-se de traduções intersemióticas: de uma linguagem artística para outra. Nas traduções intersemióticas, os “ruídos”, isto é, as alterações das características originais da obra, são de caráter criativo, uma vez que produzem novos sentidos. Entre adaptações cinematográficas de Crime e Castigo estão Festim Diabólico (1948) de Alfred Hitchcock, Pickpocket (1959) de Robert Bresson, o filme soviético de Lev Kulidjánov de 1969, Nina (2004) de Heitor Dhalia, Match-point (2005) e Homem Irracional (2015) de Woody Allen.

Em 2021, comemoramos o bicentenário do escritor e também 20 anos da primeira tradução direta de Crime e Castigo, realizada por Paulo Bezerra e lançada pela Editora 34 em 2001. Hoje, o romance já circula no país em diversas traduções. O sucesso das traduções diretas de Dostoiévski impulsionou a publicação de outras obras, inclusive de autoras e autores menos conhecidos e/ou contemporâneos.

Quanto à última pergunta, Crime e Castigo é um clássico por dois motivos. Primeiro porque Dostoiévski captou incrivelmente bem o espírito de seu tempo: um espírito carregado de “morte de Deus” e do que o autor percebia como um otimismo cego e vazio da sociedade moderna em relação ao futuro. O segundo motivo decorre da abordagem talentosa e certeira desse espírito do tempo. Ao tratar com profundidade dos problemas concernentes à modernidade, Dostoiévski falou ao sempre presente impulso do ser humano na busca por tomar as rédeas do próprio destino, importando ao autor a maneira como essa busca se dava em seu século. A perpetuidade desse impulso no homem torna a obra atemporal e, em consequência, um clássico.

Nas obras de Dostoiévski, o mundo moderno aparece como um mundo fáustico: tentar construir o paraíso na Terra a qualquer custo e sem conteúdo moral absoluto descamba em destruição e decadência. Raskólnikov deseja inaugurar um novo tempo assumindo um poder sobre a vida e a morte antes somente admitido a Deus; o preço da construção de um mundo “livre” que pertence totalmente às pessoas acaba sendo a vida dos outros, como em Fausto. A esse dilema, Dostoiévski responde com a compaixão, conhecida por nós há milênios, e que Raskólnikov também encontra em si. E, enquanto o ser humano lutar para tomar as rédeas do próprio destino, como o protagonista, o dilema e a solução apresentados na obra conservarão Crime e Castigo relevante.

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Ekaterina Vólkova Américo é mestre e doutora em Literatura e Cultura Russa pela FFLCH da USP, além de professora de Literatura e Língua Russa da Universidade Federal Fluminense (UFF). Integra Centro de Estudos Asiáticos (UFF), Grupo de Pesquisa Diálogo (USP), Núcleo Tradução e Criação (UFF), Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo de Bakhtin (UFLA). Áreas de atuação: literaturas e culturas da Rússia; semiótica da cultura; tradução; ensino de língua russa.

João Paulo de Oliveira Brito é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (POSLIT) da Universidade Federal Fluminense e ex-orientando de Ekaterina Vólkova Américo.